segunda-feira, 19 de setembro de 2016

O Copista - Parte I

Balthazar se sentia mal. Acordara no porão do navio um pouco aturdido. Não se lembrava da última vez em que comera, tampouco da última vez em que havia tomado água. Sentiu então uma súbita vontade de vomitar, mas não saía nada. Sentia-se como se estivesse embriagado. No mesmo espaço no porão onde ele estava, havia outras seis pessoas apinhando-se em dois beliches que, sem que sua mente conseguisse compreender como, fizeram caber na estreita cabine da terceira classe. O jantar no dia anterior não havia sido servido e até agora nada de café da manhã tampouco. Sua barba estava horrenda, suas olheiras profundas e seus cabelos sebosos. Nunca havia morado em outro lugar que não em Floridsdorf; nunca havia saído de Viena; nunca havia precisado viajar de navio; nunca havia precisado fugir antes. Estava fraco, deprimido, sozinho. Sentia angústia e medo, doíam-lhe os joelhos e o peito. Tentava lembrar-se de sua mãe, só para recordar-se que ela havia morrido tragicamente dois anos antes. Seu pai havia ido à guerra vinte e poucos anos atrás e nunca retornou. Ela sofreu amargamente até seus últimos dias, pensando em como a vida poderia haver sido melhor se houvesse fugido com ele para outras terras. Mas eles não foram. Veio a guerra e ele se foi, assim como o dinheiro, a esperança e a alegria

Ele se lembrou então de sua esposa. Gertrud era jovem, pele alva, olhos grandes, brilhantes, cheios de vida. Se casaram na primavera de 1928 e no inverno de 1929 nasceu Minna, preciosa filha, linda, curiosa, de voz de cetim, cabelos ondulados e super carinhosa. Dois anos depois veio Otto, teimoso e inteligente. Passaram ainda mais quatro anos até que Robert nascera e mais quatro anos até que vieram os blindados alemães. Judeus como eram, tentaram fugir. Foram informados que os oficiais do Reich viriam naquela semana. Balthazar saiu do trabalho e comprou uma mochila adicional, como havia combinado com sua esposa. Esposo e pai dedicado como era, estava sempre comprando roupas novas para seus filhos e presentes para a esposa, mas acostumou-se a coser as suas antigas. Então, para viajar, precisaria de novas roupas. Voltou para casa logo depois. O plano era simples: Entrar, pegar o que ainda faltasse e sair. Ir até a estação central de Vienna, Tomar o trem até Villach onde se encontrariam com a irmã de Gertrud, Astrid, e suas duas filhas. Daí seguiriam para Genova na Itália, onde tomariam um navio para a Argentina.

Quando chegou, viu que os soldados estavam revistando sua casa. Por um momento não viu sua família. Se escondeu, tentando crer que eles teriam fugido, que estariam escondidos. Olhou novamente. Viu seus filhos e sua esposa no carro do exército. Aquele carro negro. Ele tentou correr. Tentou ir até lá, gritar, espernear, pedir auxílio, socorro, ou ao menos ficar junto com eles. Mas seu corpo não se moveu. Estava dominado por um pavor súbito que não lhe permitia fazer absolutamente nada. Em poucos instantes, os oficiais entraram no carro e se foram. Ele viu seus filhos e sua esposa serem levados e não fez nada. Não conseguiu. Desesperou-se. Correu o mais depressa que pôde até a delegacia, mas não teve coragem de entrar. Chorou e perambulou pela cidade até a estação de trem, onde comprou a passagem direto para Gênova. Não se preocupou em parar em Villach. Não se lembrou de Astrid. Havia um torpor em sua alma. Algo extravagantemente sórdido que o preenchia. Um desejo de auto consumação. Mas tal qual fizera com sua família, fizera consigo: Nada.

Deixou-se entorpecer gastando quase tudo que tinha em bebidas no trem. Bêbado chegou ao cais de Gênova no primeiro navio que sairia da Europa. Era o “Augustus” e dirigia-se para a cidade de Santos, Brasil. Mas isso não importava. Tampouco importava mais se ia viver ou não. E foi dessa forma que dormiu. Isso já havia sido a mais dez dias. Lembrar-se agora dessas coisas só fazia seu coração e seu estômago apertarem mais. Chorava mas não saíam lágrimas. Sentia medo, frio, sono, angústia. Sua cabeça doía. Saiu da cabine e caminhou pelos corredores dos porões até as escadas. Subiu até o convés do navio. Se ele se jogasse ao mar agora, tudo acabaria. Iria para o Olam HaEmet, seria exposto à verdade de seu crime e então seria purificado. Questionaria o próprio Deus que lhe colocou esse medo terrível em seu corpo. Seria, seguramente absolvido de seu último crime. Ao chegar ao convés, foi até a beirada da embarcação. Era noite e não havia ninguém ali. Era como um convite. O mar escuro a chamar-lhe. Mas ele não conseguia. Pular não era uma opção. Tinha medo demais. Ouviu, então, um ruído. Eram passos arrastados vindo da escuridão. Ouviu então uma voz vindo da mesma direção.

- Balthazar… Você não pulará. Não pode, não é mesmo? - E sorriu. Em seu desespero, ele tentou fugir, mas outra vez estancou e não saiu do lugar. A voz prosseguiu risonha:

- Fraco e pobre Balthazar. Não pode impedir seu pai de ir à guerra, não pode salvar sua mãe, não pode salvar sua família, esposa e filhos, não conseguiu parar para salvar sua cunhada e não conseguiu acabar com a própria vida. E agora segue para uma terra de famintos e desesperados. - O corpo já era visto através da penumbra da noite. Era esguio e estava bem vestido. Era jovem. Lembrava de como, em sua imaginação, Otto cresceria para se tornar um adulto. Criou um mínimo de coragem e balbuciou:

- Q-q-q-q-quem é v-v-v-você? - O senhor se sentou ao lado do agachado Balthazar.

- Quem sou eu? Ha! Meu amigo. Você me conhece. Eu sou a sombra atrás do olho do assassino e a desesperança na voz da vítima; sou o gosto doce na boca do estuprador e a desilusão no coração da estuprada; sou o desejo da traição e raiva do traído, o medo do covarde e a força do opressor. Sou aquele que tem vários nomes e se orgulha de todos eles. Mas a pergunta não é essa, não é mesmo? A real pergunta é o que VOCÊ quer, Sr. Balthazar Ondrak.

Por um momento ele não entendeu. Ficou absorto olhando para o homem à sua frente. A dor dilacerante em seu peito seguia mutilando-o por dentro. Teve raiva mas o medo era tão grande que ele não se movia. Olhou para o homem que sorria de forma sórdida. Timidamente, Balthazar respondeu:

- Quero minha família!

- Ora, vamos - retrucou o outro - Sua família? E o que faria com eles? Os abandonaria novamente como cães? Não. Acredito que há algo que queira mais, não é mesmo?

Balthazar pensou. Se pudesse se matar, se tivesse coragem para tal, não estaria assim, nesse estado.

- Quero coragem. Coragem para me matar.

- Vejamos… - disse o outro pensativo. - Isso eu posso ajudar. Mas como se eu te ajudar de uma vez você pode se matar e não honrar o pagamento, façamos um acordo. Você trabalhará para mim por mil dias a contar do dia em que pisar em terras brasileiras. Passados esses mil dias, te libertarei desse medo escravizador e te darei coragem o suficiente para se matar. Ou para fazer o que bem entender com ela. O que me diz?

- E… E o que… o que me garante que o senhor cumprirá sua promessa?

- E qual outra opção o senhor tem? Algum compromisso nesse navio ou no Brasil que eu desconheça?

Balthazar ficou quieto por um instante. Como não viu outra alternativa e como se lhe parecesse uma oferta justa, ele assentiu com a cabeça. Antes porém de dizer o tão esperado “sim” que selaria o acordo, perguntou:

- E que tipo de trabalhos eu deveria fazer para o senhor? E ainda mais em terras brasileiras. Eu nem o “brasileirês” falo…

- Lá, eles falam o português. E eu vou precisar de um copista. Alguém que copie alguns textos que possuo sob a técnica e método que vou entregar. Os textos estão em diversos idiomas e não necessito que os compreenda. Somente que faça as cópias necessárias da forma que eu mandar. Em seu milésimo dia, te sentirás corajoso o suficiente para acabar com a própria vida.

- Mas eu terei que me manter lá por esse período…

- Sim, e isso é contigo. Mas posso mexer uns pauzinhos aqui e ali.

- Bem… então, sim, eu faço o acordo.

- Esplêndido! Vá descansar meu mais novo amigo. Falta pouco para chegarmos ao Brasil.

Balthazar deu ouvidos a seu interlocutor e seguiu entrando para a escadaria que dava acesso aos porões do navio sem se dar em conta de que o outro senhor ria. Ria de escárnio e prazer pela missão cumprida. Haviam sido, afinal, anos de trabalho intenso e meticuloso para conseguir agora seu copista, o primeiro em terras brasileiras. Pequenas inserções de medo e traumas de infância foram formando um ser que, apesar de todos os esforços, era agora um covarde. E dessa covardia ele se aproveitaria bem.

A mão humana pode coisas impressionantes, coisas tão grandiosas que a de um ser como ele não seria capaz nem agora nem até o fim dos tempos.


Link para a próxima parte:

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Por Mais



Por mais que plantes
Sempre há onde colher
Por mais que finjas
Sempre há o desmentir

Por mais que pressintas
Sempre há o imprevisto
Por mais que ponhas
Sempre haverá oposição

Por mais abjeto
Sempre há quem goste
Por mais incerto
Sempre há a fé

Por mais duvidoso
Sempre haverá certeza
Por mais icônico
Sempre há o ridículo

Por mais que morras
Sempre haverá a vida
Por mais que penses
Sempre haverá a paixão

Por mais que erres
Sempre há onde acertar
Por mais que sejas
Sempre há o “Ser”

Por mais que comas
Sempre haverá fome
Por mais que busques
Sempre haverá o que buscar

Por mais que percas
Sempre também ganharás
Pois a vida é perda e ganho
Por mais que se esperar.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Durma, meu filho



Durma, meu filho,
Durma e veja o mundo,
Caminhe como um andarilho
Durma, durma mais um segundo

Deixe a tristeza, e deixe a dor
Abandone a miséria, segure minha mão
Durma, durma, durma...

Acalme seu coração
E siga a esperança
Deixe do mundo a confusão
E pinte sonhos de criança

Deixe a tristeza, e deixe a dor
Largue a miséria, segure minha mão
Durma, durma, durma…

Seja um príncipe, seja um cavaleiro
Cante com as aves, voe com os anjos,
Em seus sonhos, seja seu passageiro
Navegue no mar, e em seus desarranjos

Deixe a tristeza, e deixe a dor
Esqueça a miséria, segure minha mão
Durma, durma, durma…


segunda-feira, 18 de abril de 2016

Erro Meu



Um dia pensei ser o amor luz e magia
E quis ter um só pra mim, sem compartir!
Sonhei eu, seria ele sem fim, sem algia,
Sem dor ou desterro, somente sentir.

Sonhando vivi uma vida fingida,
Com falsa alegria, e um falso existir.
E nessa história com zelo erigida,
Vivi em solidão em meio ao ressentir.

Em tempo larguei essa vida sofrida
Viajei, conheci, me entreguei a entender-me.
Ao invés de amar, busquei curar a ferida.

Andei, encontrei, deixei a vida vencer.
E sôfrego, vívido, só, à deriva
Achei o que queria: puro e simples bem querer.

terça-feira, 5 de abril de 2016

O Cobrador - Parte IV


Links para as partes anteriores:

Parte I
Parte II
Parte III

Era uma tarefa simples: Esperar os funcionários saírem, entrar, receber o pagamento e sair. Caso o pagamento não fosse realizado, “negociar”. Cleber entrou no prédio às 20:00. Era um desses grandes edifícios das Nações Unidas e precisou usar uma identidade falsa para entrar. Subiu até o vigésimo andar e entrou na Dope’s RH. A recepcionista usava um terninho simples, preto, com uma camisa com um belo decote.

- Boa noite senhor… Éverson - Esse era o nome falso na identidade de Cleber. - O Doutor Anderson já irá atendê-lo.

- Claro. - Respondeu e se sentou. Pegou uma dessas revistas de vitrines de empregos e começou a folhear. Cleber se sentia cansado. Ficou lembrando do último sábado. Foi um dia importante em sua vida. Sua filha mais nova, Larissa, havia se casado. Desde que se formara em veterinária pela PUC de SP esteve empenhada em montar seu consultório e se apaixonara por Ricardo, jovem psicólogo com quem Cleber tivera muitas conversas saudáveis nos últimos anos principalmente com respeito ao gosto dele por drinques diferentes. Começaram provando os preparados com cachaça e vodka, especialidades de Cleber nos últimos anos, mas logo o próprio Ricardo trouxe drinques com Gim e começaram a preparar, nos fins de semana, drinques diferentes para todos na casa. Era uma sensação. No casamento haviam contratado um barman muito conceituado para a festa. Mais que o casamento de sua segunda filha, era um amigo que estava casando. Isso era uma honra e uma alegria muito grande.

Durante os últimos vinte e quatro anos, ele havia passado por quase tudo que uma carreira promissora e ascendente como a sua poderia apresentar. Ele ameaçou, aterrorizou, torturou, mutilou e matou pessoas para cumprir suas obrigações. Recebeu e bem por cada trabalho que realizou, é verdade e, com isso, obteve um bom status financeiro para sua família. Agora, além do apartamento no Jardim Anália Franco, tinha outros doze que alugava em vários locais na cidade e um apartamento no Guarujá, além de uma casinha em Campos do Jordão. Era uma vida invejada por muitos. Luciana, sua filha mais velha, havia se tornado uma médica neurocirurgiã renomada, fazendo agora uma especialização em estudos avançados de hidrocefalia. Se casara com um bom marido que, embora não tão amistoso como Ricardo, era uma pessoa agradável e um empreendedor que trabalhava com aquisições de empresas tanto aqui no Brasil como no exterior, inclusive com algumas empresas de Venture Capital do Vale do Silício nos E.U.A. Fabíola, sua esposa, era uma senhora linda e inteligente. Havia voltado ao ramo hoteleiro depois que as filhas se formaram, e hoje era administradora de três grandes hotéis de uma franquia de renome internacional. Cleber a impulsionou bastante de início mas depois se tornou algo desnecessário. Agora, ela já estava engajada e não queria mais parar. Porém, cobrava de Cleber que seu trabalho na área de cobranças do banco de investimentos, apesar de rentável, era muito cansativo e que ele lucraria muito mais em ajudá-la com os hotéis.

E, por mais que ele gostasse do que fazia, já se sentia cansado. Queria se aposentar. A DANTE, porém, já havia negado por duas vezes seu pedido de aposentadoria, alegando não conhecer alguém que fizesse o trabalho tão bem como ele fazia. Não parecia haver solução para esse problema. Em meio a esses pensamentos, A recepcionista o chamou.

- Senhor Éverson, o Doutor Anderson pediu para que vá à sala quatro.

- Obrigado.

Lentamente se encaminhou para a sala, onde encontrou um senhor idoso, em cadeira de rodas em uma mesa grande, de vidro. Também estava presente uma garota vestida de vermelho. Enquanto o senhor tinha por volta de seus cinquenta anos, ela devia ter uns 25 anos, os olhos levemente puxados. Pelas feições, deveria ser boliviana ou peruana talvez.

- Entre, feche a porta e sente-se, por favor. - disse Doutor Anderson. Cleber se sentiu um pouco constrangido pela ordem. Também lhe deixava desconfortável a presença da mulher no recinto. Mas atendeu ao pedido e se sentou.

- O senhor é aquele conhecido como O Cobrador, não? - Cleber levantou a sobrancelha para o senhor na cadeira de rodas.

- Sim. Você tem o pagamento?

- Sim. Aqui está. - E apontou para a garota.

- Pois me entregue. Acabemos com isso.

- Você está com pressa, não? Pois bem. Ariela, acompanhe o jovem rapaz.

A garota se levantou e disse com um sotaque latino carregado:

- Vamos? - Sem entender nada, o cobrador pegou seu celular e olhou a missão novamente. Dizia simplesmente “Pegue o pagamento. Caso não seja entregue, negocie.” Isso era muito lacônico. Apesar de algumas vezes o deixarem na mão com relação a algumas informações, nunca algo assim tão sem sentido. E ele nunca antes havia deixado algo assim passar. Sentiu-se perdido.

- Senhor Anderson, não entendi. O que o senhor está insinuando, mais precisamente? - O doutor o olhou confundido.

- Senhor cobrador, agora quem não entende sou eu. O senhor é o cobrador da DANTE, não? - Cleber respondeu meneando a cabeça. - E o senhor veio pegar o “pagamento”, não é? - O homem gesticulou as aspas com as mãos.

- Sim, mas…

- Então. Aí está. Ela é nova, vinte e cinco anos apenas. Cabelos longos e olhar atraente. Está apta para o serviço.

- Mas… Isso é novidade. Nunca levei uma pessoa como pagamento de nada. Alguém deve haver se enganado e…

- Não. Tenho absoluta certeza de que esse é o pagamento. Se houver qualquer problema pode me contatar aqui amanhã pela manhã.

O Cobrador não soube o que fazer e resolveu entrar no jogo. “Vamos ver até onde isso vai”, pensou ele.

- OK. Então vamos… Ariela?

- Si! - disse a garota.

Com um meneio breve com a cabeça, ele se despediu do Doutor Anderson. Passou pela recepção e chegou aos elevadores. Ao chegar ao térreo, seguiu caminhando, a garota atrás. Ela então perguntou:

- Donde está el carro?

- Estou a pé. - Respondeu sem parar de caminhar, com a garota atrás.

- Caminando?

- Sii, ca-mi-nhan-do! - Respondeu com ironia enquanto seguia pela Avenida das Nações Unidas.

A garota apertou o passo para chegar a seu lado e, quando já se aproximava, ele deu sinal para um ônibus que ia apenas passando.

Subiram.

- Você não tem um bilhete único, né? - Disse mostrando o seu.

- No.

A contra gosto, ele pagou a passagem para ela. Essa era uma de suas peculiaridades. Não gostava, por mais rico que houvesse ficado, de compartilhar a passagem. Andava de transporte público em suas missões. E sozinho. Sentaram-se num dos bancos próximos à porta de saída. Havia trânsito e assim que o ônibus saiu do corredor da Nações Unidas, estava tudo travado. Cleber, então, puxou seu celular e enviou uma mensagem a seu chefe:

“Já tenho o pagamento. O que faço agora?”

Em segundos veio a resposta:

“Leve para o Doutor Ambrósio. Endereço a seguir.”

E veio o endereço, um edifício na Rua dos Gusmões, no centro. Ele achou estranho. E ficou muito bravo consigo mesmo. Ele se lembrava de haver ido a alguma missão nesse endereço, mas não se lembrava bem de que ou para que. Como ainda havia trânsito, puxou assunto com a garota.

- De onde você vem mocinha?

- De Bolívia.

- De que cidade?

- De una pequeña villa cerca de Santa Cruz de la Sierra. Se llama San Julian.

- Longe, né?

- Señor?

- Looonge - e fez um gesto distanciando as mãos uma da outra.

- Si…

- E está aqui a quanto tempo?

- Llegué… hace siete dias…

- Nossa! Por isso ainda não fala português.

- No.

- No que? - perguntou confuso Cleber.

- No hablo portugues. Solo poquito.

- E o que você faz aqui?

- Señor?

- Errr… Você trabalha? Estuda? O que faz?

- Ah! Eu vine… mmm… Cuidar de mi família... - e pôs a mão na barriga. Cleber não entendeu direito o gesto, mas não soube o que perguntar. Meneou com a cabeça e ficou absorto, pensando em momentos de sua própria família na festa do último fim de semana.

Chegaram à estação Faria Lima do metrô e, mais uma vez, Cleber pagou a passagem de ambos. Desceram na Estação República e seguiram caminhando pela noite mal-cheirosa do centro sentido a Rua dos Gusmões. Enquanto seguia, se lembrou de sua primeira missão e riu. Como tudo havia mudado. Antes era atendente de telemarketing sem futuro e agora era um bem sucedido cobrador. Antes temia a quase tudo; todos agora o temiam. Mas de acordo se aproximavam do endereço indicado, foi diminuindo o passo. Então parou. A mocinha parou ao lado dele.

- Llegamos? - Perguntou ela

- Espere. Há algo errado. Como você veio ajudar a sua família?

- Eso. Ayudar familia. - E mais uma vez levou a mão até a barriga. Não fazia sentido. Andou um pouco mais e subiu por uma porta alta por onde seguia o endereço que lhe havia sido passado. Ele já havia estado nesse lugar. Não se lembrava mais quando. “Deve haver sido alguma cobrança simples.” Pensou ele.

Chegou até o terceiro andar do pequeno edifício com a garota em seu encalço. Bateu na porta 32.

- Quem? - Disse uma voz conhecida de dentro.

- O Cobrador.

- O que você quer? Não devo nada.

- Me pediram para fazer uma entrega aqui.

A porta se destrancou e um senhor já de idade, com uma verruga no rosto apareceu. Cleber se lembrou na hora. Havia vindo receber um dinheiro desse mesmo senhor a um tempo atrás. Ele pagou sem problemas e foi tudo muito rápido. Porém o cheiro do lugar era horrível, assim como agora. O velhinho olhou para trás de Cleber.

- É ela?

- Sim, mas antes preciso saber o que será feito.

- Isso não está no acor… - Sem esperar, Cleber empurrou a porta e entrou. O senhor carrancudo e baixinho estava sem calças e se via ridículo de cuecas e camiseta regata. A garota entrou tapando o nariz. O cheiro era mesmo terrível. Havia uma penumbra causada pela luz amarela no meio da sala e pela televisão velha ligada em algum canal qualquer. Era um cheiro de sangue, urina e pão mofado. Havia uma mesa metálica no meio do cômodo. O velho fechou a porta atrás deles. E se virou para a garota, ignorando por um instante o cobrador.

- Está aí? - E apontou para a barriga da garota.

- Si. Y mi família?

- Estarán bien. Tranquila. De cuanto tiempo estás? Parece de pocos meses...

- No. Son siete. como combinado. Pero la barriga sigue pequeña.

- Siete está perfecto.

Cleber se esforçou para escutar e, de um instante, entendeu o que se passaria. Enviou uma mensagem para seu chefe:

“Cheguei ao local com o pagamento. E agora?”

“Está liberado. O pagamento será transferido amanhã.”

- Senhor cobrador… Já viu o que queria? - Disse o intimidado velhote.

Era uma situação complicada. Ele havia entendido o que se passaria aí. Sob o pretexto de ajudar sua família de alguma forma, a garota ia passar por algum procedimento cirúrgico com esse senhor. Cleber já havia passado por muita coisa nesse trabalho. Mas nunca algo assim. Ele então relembrou vários momentos de sua carreira em que ele se sentiu bem por estar fazendo o que gostava e tentando fazer o que lhe pareceria correto. Agora era diferente. Ele não tinha nenhum prazer nisso. E não lhe parecia correto. Ele olhou para a garota de vinte e cinco anos. Larissa, sua filha, era apenas dois anos mais velha.

- Ariela, onde está sua família?

- No sé. Voy ayudar a ellos.

- No, no vas. No así. - Disse Cleber no melhor espanhol que conseguiu.

Ele agarrou o velho pela camisa e o olhou de forma amedrontadora. Lhe meteu um tapa na cara e depois outro.

- O que você sabe sobre a família da garota? Fale! Agora!!

- Eu não sei, eu não… aaaahhhhh - Esperneou o velho quando Cleber lhe deu um soco no meio do estômago e depois outro no lado esquerdo, enquanto ainda o segurava pela camiseta regata. - Para! Para! - Gritou o velho, mas Cleber não parou. Em meio à imundiçe, seguiu jogando o velhote no chão. Ele tentou se levantar, quando foi surpreendido por um chute na lateral da coxa esquerda. Cleber se abaixou e, com uma mão e toda sua raiva, levantou o velho do chão. Com a outra, ele deu outro murro forte, agora no baço. - Estão mortos. Todos eles. A mãe, a irmã e o pai. Morreram… Aiii… - Colocou a mão na barriga. Respirou. - Morreram quando vieram doar os órgãos. Eu não sabia que estavam doentes. Não resistiram.

- Seu safado! - Cleber tirou o facão. - E o que você ia fazer com ela?

- O bebê! Vale muito um bebê no mercado, sabia? - Mas eu posso te dar o dinheiro se você quiser…

- Seu filho da puta! Como seria capaz? Roubar o bebê dela e nem cumprir o acordo? Você ia matar ela também, seu desgraçado! - Cleber nem pensou mais. Pegou o homem pelos cabelos e levantou a cabeça. Passou o facão afiado pela garganta, cortando-a profundamente e largando o corpo no chão.

A garota começou a gritar e chorar. Enquanto ele limpava o facão na roupa do velho.

- Senhorita, controle-se. A noite não terminou. Me siga. - E saiu, sem dar explicações ou esperar. A garota veio gritando atrás dele.

- Que hiziste? Jesus, mi familia, mi familia!

- Estão mortos! Todos. Muertos! E lo mismo ia pasar con você - E apontou para ela. - E con su hijo! - E apontou para a barriga dela. - Ahora CALLATE! - Ainda processando a informação e todo o ocorrido, ela o seguiu chorando, mas sem gritar.

Subiram de volta para a praça da República e foram até o escritório da DANTE na Rua Sete de Abril.

- Espere-me aqui - disse à jovem.

Subiu até o quarto andar e passou pela porta rapidamente. A recepcionista, ainda estava trabalhando. Ele andou direto de encontro ao balcão da recepção.

- Senhor Cleber…

- Marília, o Jânio…?

- Sala três.

- Obrigado.

Esbaforido, ele entrou. Empurrou a porta da sala três e aí estava Jânio, seu chefe, e mais quatro pessoas. Era alguma reunião tardia. Um homem, mais ou menos seus trinta e poucos no lado direito da mesa e outros dois no lado esquerdo. Um deles era mais velho, algo em torno dos cinquenta. Os três estavam com bons ternos. Na ponta da mesa de vidro, de frente para a porta, estava Janio, com sua barba farta e seu porte de quem não sai da academia.

- Cleber? Não esperava ver você aqui hoje… Veio pelo pagamento?

Ele parou próximo à porta. Eram quatro. Refletiu rapidamente e sorriu.

- Sim. O pagamento. - Passou o trinco da porta atrás de si. - Me diga uma coisa. Você sabia?

- Sabia o que? Era só mais um trabalho. Você fez a entrega?

- Eu não sou entregador. Sou cobrador. E vim aqui cobrar de você. - Ele tirou o facão e, enquanto os quatro homens lhe olhavam para ver o que ele faria, ele pôs o pé na mesa de vidro e a empurrou com toda a força que tinha pressionando a Jânio contra a parede. O homem que estava à direita meio que por instinto, avançou na direção de Cleber que, sem piedade, enfiou o facão no meio do estômago dele. Puxou-o pelo ombro direito e forçou a faca mais para dentro e depois o empurrou no chão. Quando caiu, o homem deixou um maço de cigarros e um isqueiro cair do bolso. Os dois outros homens também se precipitaram para Cleber que se esquivou de um golpe retalhou o rosto do primeiro com um corte que foi do olho até o queixo e, em seguida, avançou para o segundo, o mais velho, que lhe deu um soco no rosto e depois outro. Cleber não parou. Recuou um passo quando vinha o terceiro golpe e, enquanto puxou-o pelo braço que havia tentado golpeá-lo, enfiou o facão de baixo para cima no queixo. Puxou o facão e enfiou na nuca do outro rapaz que havia sido anteriormente retalhado. Em menos de dois minutos, os três homens estavam mortos, misturando seu sangue ao carpete.

- Senhor Jânio. - Disse Cleber enquanto abaixava para pegar os cigarros e o isqueiro. Jogou os cigarros sobre a mesa. - Deseja um último cigarro?

- Mas o que você fez? O que você vai fazer?

- Eu fui cobrador da empresa por tempo demais. Mais tempo que deveria. Você deveria ter me aposentado quando eu pedi. - Cleber se aproximou de Jânio. Pegou sua faca e, sem nenhuma explicação, nenhum sinal no rosto, nada mais que um rápido movimento, enfiou a faca na garganta dele pelo lado. Puxou-a e foi até a cortina. Acendeu com o isqueiro e olhou o fogo começar enquanto limpava o facão no paletó de seu ex-chefe. Guardou-o.

- Amanhã não precisa me pagar. - Disse antes de sair. Marília já havia ido quando ele saiu. Nunca saberia o quanto ou o que ela haveria escutado.

Ao sair, a garota ainda lhe estava esperando. Levou-a para sua casa. Explicou a sua esposa que havia pedido demissão. Também disse que a garota tinha perdido a família num acidente e que estava grávida. Mentiu dizendo que ela era filha de uma ex-colega do trabalho e que estava precisando de ajuda. Após uma longa conversa, sua esposa entendeu e aceitou.

A garota ajudou trabalhando nos negócios de Fabíola e, como suas filhas já estavam grandes, ela seguiu morando com eles. Batizou o menino que nasceu de Cleber, em homenagem a seu salvador. Cleber não voltou a ser o cobrador. Mas também nunca deixou de sê-lo...



sexta-feira, 1 de abril de 2016

Se...



Se a cabeça não doesse tanto
Se minha perna não fosse tão curta
Se não houvesse contido meu pranto
Se minha vista não fosse tão turva

Se eu houvesse saído do canto
Se ao mudar eu seguisse a curva
Se minha noite tivesse acalanto
Se eu não fosse aquele que surta

Se diferente pensasse em vida
Se eu pudesse fazer outra vez
Não deixaria minha alma detida

Libertaria do lobo de vez
E trataria deixá-la ungida
Sem a prisão de quiçá ou talvez

segunda-feira, 28 de março de 2016

O Cobrador - Parte III


Links para as partes anteriores:

Parte I
Parte II

Dois homens bem vestidos entravam pelo saguão de um importante edifício na pequena rua Três de Dezembro no centro de São Paulo naquela manhã de segunda-feira. O mais velho, de olhos puxados trajava um terno cinza, gravata vinho e camisa branca, além de uma barba branca, bem feita. O outro, um pouco mais jovem, com a tez moreno-escura, trajava um terno cor de creme, e uma camisa também creme, um pouco mais escura. Enquanto o primeiro homem levava consigo uma valise, o segundo não trazia nada às mãos além de um jornal “O Estado de São Paulo”, do dia, em cuja manchete principal era o aumento do número de mortos na capital nesse ano em comparação com o mesmo período no ano anterior. Nada parecia fora do comum. Ambos entraram no elevador e apertaram o botão para o quinto andar.

- Francamente, o Santos já não é o mesmo a muito tempo - Disse o senhor mais velho ao outro, fazendo uma referência à segunda notícia principal de capa que mostrava a derrota do time para a Ferroviária.

- É verdade seu Áureo. Meu pai já nem acompanha mais futebol por causa disso.

- Beto, mas se a gente não for acompanhar futebol, o que vamos acompanhar? Os obituários?

Ambos riram enquanto saíam do elevador para o corredor em penumbra. Se dirigiram até uma sala onde dizia “Tanaka e Jamba Advogados”. A porta estava trancada.

- Diacho! - Praguejou Beto - A Luzia não chegou ainda??

- Quando ela chegar, mande-a embora e contrate outra recepcionista. Cansei dela.

- Essa porta ainda está emperrando - O jovem empurrou com força após destrancá-la e, enfim, conseguiu abrir o escritório.

Entraram.

Áureo se prontificou em ligar a chave geral e acender as luzes, enquanto Beto entrou para a pequena copa para abrir as cortinas e deixar o ar entrar. Ao passar pela porta, porém, foi surpreendido por uma mão vinda de trás tapando sua boca, enquanto outra lhe pressionava algo pontiagudo em suas costas. Uma boca se aproximou de sua orelha esquerda.

- Não se mova, não grite, não fale. Meu negócio aqui não é com você, mas com seu sócio. Se ficar calado e cooperar, não sairá machucado e tudo acabará rápido. - Disse a voz e começou a afrouxara boca do jovem rapaz. Quando pode falar, ele perguntou, tremendo de medo, em voz embargada.

- O que devo fazer?

- Nada Doutor Roberto. - E o empurrou para uma cadeira. - Apenas ficará aqui, sem incomodar.

Com grande habilidade, o intruso pegou uma corda forte e amarrou o advogado ao assento e em seguida tapou sua boca. Foi então que Beto viu que, desmaiada no chão da copa estava Luzia, a recepcionista, inconsciente. Foi então que se ouviu da outra sala:

- Beto, você sabe onde está a pasta do caso da Senhora Dorneles? Não tô encontrando aqui no computador. - O intruso deu alguns passos para fora da cozinha.

- Olá Senhor Áureo, como tem passado?

- Quem é você? Onde está o Beto? Vou chamar a polícia.

- Se você chamar a polícia, terá que explicar o sangue que haverá na sua cozinha. - Sr. Áureo abaixou o celular.

- O que você quer?

- Você pediu um empréstimo à DANTE a um ano. Eu vim receber o pagamento. São duzentos mil reais. Pague agora. - O cobrador foi se aproximando da mesa do advogado. Cleber estava mais velho. um ar mais altivo, imponente. Mas o que mais assustava era seu olhar. Havia algo de impiedoso, de intrépido e de amedrontador naqueles olhos castanhos que faziam você não querer olhar diretamente para eles. Era como a profundeza do mar ou a escuridão da lua nova.

- Mas eu não tenho o dinheiro, já disse a seu representante. Por favor, me dê um novo prazo… Eu juro que vou pagar. - Cleber já estava bem próximo à mesa. A faca à mostra somente fazia com que o Doutor Áureo estremecesse mais.

- Seu prazo venceu ontem. Eu vim cobrar o pagamento e os juros. - O rapaz pegou o celular e jogou na lixeira próxima à mesa. - Mas se não tiver o dinheiro, ainda assim receberei ambos.

- Mas eu não tenho. - Desatou a choramingar. Sua seriedade foi abaixo. - O empréstimo tinha sido para subornar o juiz no caso da Deputada Jakeline mas o advogado dela pagou mais. Resultado, fiquei sem o dinheiro e ainda perdi a causa. Por favor, me dê mais tempo. Estou entrando num caso em que o Pastor Herivaldo me garantiu que ganharemos e será uma boa grana.

- Sr. Áureo, o senhor não tem mais dinheiro nem para o Lobby. E eu não vou voltar assim, de mãos abanando.

- Mas eu tenho família. Por favor, não faça isso comigo. Eu preciso tentar. Me dê uma semana...

- Vamos fazer o seguinte doutor. Me simpatizei por você. Além disso, meus associados estão a par do processo do Pastor Herivaldo contra o Bispo Manjuvo. É um caso de plágio, não é? - O advogado balançou ferozmente a cabeça afirmativamente. - Assim sendo, vou cobrar apenas os juros hoje. E te dou um prazo de até um dia após a publicação do resultado no D.O. O que me diz?

- Mas eu não tenho dinheiro para pagar nem os juros. Por favor…

- Mas bom senhor, quem disse que os juros serão pagos em dinheiro? Ponha suas mãos sobre a mesa, com as palmas para baixo, sim?

O homem sabia o que viria. Pensou um pouco, mas não viu nenhuma solução. Seus olhos começaram a chorar sozinhos, sem controle. Ele colocou lentamente ambas as mãos na mesa. - Faça o que deve ser feito. - Disse e ficou olhando para o cobrador.

Cleber pegou o facão e fez um pequeno corte na primeira falange do dedo anelar de cada mão do Sr. Áureo. Em seguida, olhou para o Sr. que chovara desconsolado.

- Dr. Áureo Tanaka, de qual dos seus dedos anelares o senhor gosta mais? - O advogado não respondeu. - Pois bem. Eu levo o da direita então. - E cravou a ponta do facão da metade esquerda da junção entre a primeira falange do dedo direito e o restante do dedo. Em seguida, puxou para o lado e apertou com força. Um corte firme, preciso. Mas o advogado não gritou, não tentou impedir, nem buscou mover-se. Ficou ali, parado, sentado, chorando pateticamente, enquanto Cleber pegava a primeira falange do dedo anelar da mão direita e colocava dentro de seu lenço de bolso.

- Pronto. Desculpe-me. Os juros estão pagos e temos um novo acordo que, creio, será de agrado de meu chefe. - Guardou o lenço com o dedo no bolso. - Ah, já ia esquecendo. Talvez você não veja sua filha de hoje até o dia do julgamento do Bisbo Manjuvo. Talvez, como incentivo, ela venha a frequentar as cerimônias do Pastor Herivaldo… Enfim, é melhor que cumpra nosso acordo, ok?

Ainda chorando, Sr. Tanaka respondeu afirmativamente.

Cleber desceu pelas escadas como normalmente fazia quando tinha um trabalho. Saiu do prédio e virou à esquerda, se dirigindo à Rua Quinze de Novembro. Os camelôs começavam a colocar suas lonas no chão para espalhar os produtos para venda enquanto os engravatados se dirigiam ao prédio da BOVESPA. Somente mais um dia normal. Pegou seu celular informou o status da missão a seu superior, Jânio, substituto de André depois que ele morrera de câncer de estômago e seguiu seu caminho para sua segunda missão, bem mais longe do centro que a primeira.

Tomou o metrô na praça da Sé e depois de uma viagem tranquila até a estação Corinthians-Itaquera, onde fez a baldeação para o trem da linha 12, descendo na estação São Miguel. Caminhou até a Avenida Marechal Tito e, em seguida, até a Avenida Nordestina. Rua feia e estreita, com paredes pichadas e sujas. Caminhou com seu terno chamativo para a região nesse horário até a sede da Igreja do “Movimento Evangélico da Real Dinastia do Advento”. Uma dessas novas igrejas feita por pastores que gozavam de isenção de impostos para poder receber dinheiro dos fiéis em troca de um lugar ao lado de Deus no dia do advento.

Ao lado do templo estava uma casa bonita, um sobrado com balcão. Era aí que Cleber teria sua próxima missão. Tocou a campainha e esperou. A janelinha da porta abriu e uma senhora, cabelos grisalhos e ar cansado respondeu.

- Pois não?

- Minha senhora, o Bispo Eduardo Manjuvo está?

- Um minuto.

A senhora entrou e, enquanto esperava, com uso de uma micha, ele forçou, com precisão, a tranca da porta, destrancando-a, mas deixando-a fechada. Se afastou e guardou a ferramenta quando ouviu os passos. Ficou bem próximo à porta. Ainda pela janelinha, O Bispo Eduardo apareceu.

- Bom dia meu irmão, em que posso lhe ser útil?

- Olá Bispo, corte a ladaínha. Meus associados me enviaram para cobrar sua dívida e os juros.

- Eu não sei do que você está falando, e…

Cleber não esperou a explicação. Meteu um pontapé na porta destrancada e ela surpreendeu o bispo de tal forma que ele caiu para trás soltando o pequeno revólver de calibre 22 que tinha na mão. Ele se projetou para dentro da casa, chutando a arma para um cômodo no lado direito. Enquanto o bispo tentava se recompor, ainda no chão, Cleber empurrou a porta para trás com habilidade, fechando-a, e pisou com força no joelho do bispo caído. Um urro estridente de dor saiu da boca do homem, enquanto a senhora de cabelos prateados se projetava pelo corredor gritando. Em apenas três passos largos, o cobrador a alcançou e deu um murro bem forte no nariz da velha. Ele teve a delicadeza de segurá-la nos braços antes que ela caísse, para que não se machucasse no chão. Se virou para o bispo e voltou caminhando lentamente enquanto ele gritava pela dor no joelho.

- Eu odeio o seu tipo, senhor Manjuvo, mas estou aqui apenas para fazer meu trabalho. - O bispo começou a se sentar, mas Cleber empurrou-o para baixo novamente com o pé em seu peito, mantendo-o nessa posição. - Onde está o dinheiro?

- Eu não o tenho. Por favor, tenha piedade! Eu sou um homem de bem. Nem minha mãe nem eu merecemos isso…

- Você sabia no que estava se metendo quando pediu o empréstimo para apoiar o orfanato. Seus fiéis podem ter acreditado nas suas pregações imbecis a respeito de multiplicação do dinheiro, mas nós sabemos a verdade. Sua igreja cresceu no bairro a custo alto, mas agora é hora de pagar. Onde está o dinheiro?

- Eu não tenho! Eu não tenho! Por favor, não me mate! Tenha piedade! Por favor. - Ofendido com a comparação feita de sua função com a de um assassino, Cleber levantou o pé do peito do bispo e bateu com o salto do calcanhar do sapato com força no queixo do homem desesperado. Ele ficou atordoado e gemendo, e brotou sangue de sua boca. Sentiu seus dentes enfraquecerem e uma tontura repentina. Não pôde gritar.

- Eu não sou assassino seu verme. - Cuspiu. - Escória! Vou perguntar só mais uma vez. Onde está o DINHEIRO!

Assustado e aturdido, o jovem bispo verteu lágrimas que se misturaram ao sangue. Olhou para a mesa, onde estava o livro sagrado. Cleber estendeu a mão e pegou a Bíblia. Abriu o zíper e caíram dólares de dentro. Eram umas vinte notas de cem. O religioso se sentou no chão novamente e olhou com ar de desespero.

- Não entendi, senhor. O senhor está tentando me subornar? Com dois mil dólares, é isso? Eu não posso acreditar. O senhor é uma lombriga rastejante e acha que eu sou da mesma laia? Onde está o dinheiro do empréstimo seu filho de uma puta? - Somente agora Cleber tirou sua faca. - Se o senhor não tem o dinheiro da dívida - e jogou os dólares sobre o pastor - vou te impor uma nova condição de pagamento. A audiência do processo do Pastor Herivaldo contra o senhor é amanhã, não é? - O homem, ainda desesperado, balançou a cabeça afirmativamente. - O senhor irá propor um acordo no qual o senhor reconhecerá o plágio no nome da sua igreja e que o copiou diretamente do Movimento Evangélico da Redenção por Deus no Alto. Assinará o acordo propondo um parcelamento no pagamento da indenização de não mais que dez parcelas e solicitará um prazo para mudança do nome da sua igreja de não mais de trinta dias. Estou sendo claro? - Vociferou.

- S-sim, sim! - respondeu o humilhado bispo.

- Está bem. Assim sendo, vou cobrar somente os juros hoje. - Com força, o cobrador pegou o bispo pelo pescoço e jogou de cara para o chão. Apoiou o joelho na base da coluna, abaixando-se e levantou a camisa do desesperado homem no chão. Com seu facão afiado, cortou uma lasca de uns cinco centímetros de comprido da pele das costas dele. Eduardo Manjuvo começou a gritar de dor, mas o grito deu lugar a um choro de sofrimento e de angústia. Cleber guardou em outro lenço no bolso da camisa a lasca de pele, se levantou e saiu pela porta, dessa vez, sem pedir desculpas.

No dia seguinte, tudo ocorreu como esperado. O Bispo Eduardo Manjuvo admitiu publicamente ao Pastor Herivaldo o plágio no nome e ficou de pagar uma indenização em um prazo de dez meses. Um terço desse valor iria para a Tanaka e Jamba Associados, que defendia o Pastor Herivaldo na causa e, com isso e um parcelamento da dívida, o advogado conseguiu saldar sua dívida com a DANTE sem maiores dificuldades.

Cumprindo com seu dever cívico de trabalhador honesto e pagador de impostos, dez meses depois, Cleber abriu uma denúncia de porte de arma ilegal contra o bispo Eduardo Manjuvo. E se aproveitando dos contatos que a DANTE adquirira anos antes na Secretaria de Segurança Pública, pediu sigilo maior e agilidade ao caso. Em menos de um mês o Bispo Eduardo Manjuvo foi preso e condenado a trinta meses de prisão e uma multa de doze mil e quatrocentos reais. O dinheiro da multa seria revertido a ajudar o orfanato do bairro de São Miguel Paulista mas, dessa vez, sem propaganda religiosa. Cleber, o cobrador sentiu nessa missão que havia feito mais que seu trabalho. Havia feito um dever para com a sociedade em que vive e havia feito o bem. Anos mais tarde, quando suas filhas já estavam formadas e cada uma exercendo sua função para a sociedade, ele ainda se lembraria dessa missão com carinho pois ela o fez guardar um sentimento de justiça e de que, qualquer que seja sua função na sociedade, é possível usar os meios que tenha para fazer de nossa cidade um lugar mais justo.



Link para a parte final:

Parte IV

quinta-feira, 24 de março de 2016

Jorge Carola




O pulso, pungente, o mar sereno
do bar entrante na selva incessante
ao rio estridente a cotovia falante
carola à luz faceira de lua brilhante
com São Jorge habitante em que, pasmem,
moribundo Dragão da chama acesa, processo
invertido do juiz catedrático com gárgula à porta,
pregava à carola, faceira com véu da noite,
erguida à Lua acesa com luz em breu,
na asa do anjo ou da cotovia?

Ou talvez do pardal, professor enérgico
da força pura do campo magnético,
bulido em burburinhos, murmurinhos
e borbulhos cálidos de mar violento,
penetrantes como os olhos da noiva,
com véu aberto, sonhando com noites
pungentes enquanto, bêbado, Jorge
sonha com Carola, cartomante, quiromante e
pálida à luz do luar da nova selva de pedra
tolhida à guerra vencida a força da Espada
de Ogum que, com Iemanjá e Oxum faziam
festa bêbados ao terreiro do celeste inverno
branco ao som dos rugidos de dourado Dragão
da cansada e pálida cotovia-pardal voadora
do céu de Gales do Sul, ou do Oeste do Rio Amazonas
ou de Kioto, onde tudo, tudo pode acontecer!

Ao pulso medido na selva ao nível do mar
por Jorge, médico do hospital Cotovia, esposo
de Carola casados na noite, cansados no dia,
desquitados a fogo-fátuo com a benção do
anjo-dragão, a céu aberto por um juiz desmiolado
amante de Gárgulas e de faceiras carolas embreagadas.

Justas as Carolas que amam juízes e separam-se de
maridos injustos e embreagados à porta do gárgula-tribunal,
incisivo e voraz, com fogo ardente, pungente a pulso ferido e mortal.
Esquecem-se de Jorges furados e penetrados por
espadas-lanças de Oguns-Dragões,
habitantes de luares-selva de pedra-relva,
onde mora o angelical pardal-cotovia, de asas marrons-esbranquiçadas
e carregam, na lenda e no sonho, as almas de Jorge-Carola ao mar brilhante.


terça-feira, 22 de março de 2016

O Cobrador - Parte II


Links para a parte anterior:

Parte I

Cleber, ou melhor, O Cobrador, como era conhecido agora, estava ansioso. Não que este trabalho no Morumbi fosse mais difícil ou mais fácil que os outros que tomara desde que se filiou à DANTE, nem que o dia estivesse particularmente complicado ou que houvesse algum problema pessoal no momento, mas essa seria a primeira vez que teria que matar por conta de uma cobrança.

Desde sua filiação à “empresa”, Cleber havia feito vários trabalhos diferenciados. A maioria deles, na verdade, envolvia ameaçar algum credor para que ele pagasse corretamente suas dívidas, ou lembrar um ou outro que seu prazo estava prestes a expirar. Em alguns poucos casos, envolviam algumas mutilações pequenas como um dedo da mão ou do pé. O caso mais célere foi um em que fora solicitado a cortar com uma tesoura o tendão do calcanhar esquerdo de um homem. Nesse trabalho se sentiu mal. O homem gemeu tanto que desmaiou de medo. Despertou durante a dor mas essa foi tamanha que voltou a desmaiar.

Mas Cleber estava bem. Sua família e ele haviam mudado para o Jardim Anália Franco, para um apartamento luxuoso próximo ao Shopping. Suas filhas haviam sido transferidas para uma boa escola particular na região e ele, claro, estava feliz. Mas o que o trazia mais alegria não era a esposa ou o bem estar das filhas; Não era o cachorro, filhotinho de pug, que haviam comprado, nem a televisão de quarenta e duas polegadas comprada à vista no dinheiro; nem mesmo as cervejas importadas que recebia em casa agora que fazia parte de um clube especializado ou o carro do ano que comprara a uma semana. Era o trabalho. O antigo atendente de telemarketing finalmente havia descoberto para o que nascera. Claro que não disse a sua esposa de que se tratava. Em vez disso, disse que fora contratado para trabalhar na área administrativa no setor de cobrança de uma grande empresa: A DANTE. E o que fazia a DANTE exatamente? Bem, Cleber não entendia ao certo. Para o mundo, a DANTE era como um grande banco de investimento privado. Porém, seus sócios tinham negócios com toda a sorte de pessoas. Desde empresários a empresas beneficentes; De escolas e hospitais a empresas na área de construção civil e no mercado imobiliário. Seus chefes diziam que o objetivo da empresa é “fazer o mercado girar”. Só que o prazer de Cleber, não era em ganhar dinheiro como seus chefes, nem em alguma pretensão social. Era bem mais básico. Ele sentia gosto na tortura, na ameaça, em sentir-se poderoso em meio aos poderosos. Ele sentia o prazer no sangue, na ameaça, no olhar de medo do inimigo, em conseguir “superar-se”. E nos últimos seis meses havia se superado em muito…

Nessa sexta-feira de sol, porém, algo novo surgia para Cleber. Ele teria que assassinar uma pessoa. O trabalho seria, obviamente, mais rentável, apesar de não envolver a coleta de nenhum valor em espécie. De fato, no começo, ele nem havia entendido muito como um trabalho como esse poderia envolver um setor chamado de “cobrança” mas, muito superficialmente, o homem que se dizia chamar André o explicou: “Cobrança não se trata só de pedir o pagamento de algo, mas de garantir que outros o façam. Nesse caso, uma pessoa dentro da secretaria de segurança pública do Estado de São Paulo esteve envolvido em um empréstimo que tinha como origem o dinheiro de uma parte da força da polícia militar que trabalha nas rondas escolares. Ele não pagou. Você vai lá e mata um dos assistentes dele e depois liga, cobrando. Ele deverá pagar.” Cleber não entendeu tão bem a lógica da coisa. Mas é verdade que conseguia compreender que, se tratando de uma pessoa de relativa importância no cenário político, uma mutilação poderia alarmar muito a mídia.

Como sempre fazia quando tinha algum trabalho, foi de transporte público. Tomou o ônibus na Av. Vereador José Diniz e depois o Metrô, onde descera na estação Faria Lima. Tomou outro ônibus e desceu próximo ao Palácio. Trazia consigo somente sua faca (que substituíra o canivete usado nas primeiras missões) e um par de fotos da vítima, além de sua carteira, celular e óculos escuros. Trajava um terno simples, preto, camisa branca e gravata preta. Não tinha nem o nome da pessoa. Segundo André, o alvo estaria chegando ao local por volta das dez da manhã. Um observador em algum lugar que não havia sido dito a Cleber o avisaria por uma mensagem no celular quando o alvo estivesse se aproximando do local.

Eram nove horas quando Cleber chegou à altura da Avenida Morumbi onde haviam combinado. Esse ponto fora escolhido por não haver câmeras de segurança ou policiamento constante. Ficou ali, no ponto de ônibus, esperando o chamado e observando o trânsito e os casarões. Estava muito complicado o dia para quem estava de carro. Ele não tinha ideia de como faria para assassinar o alvo com uma faca. Esses carros costumam ser blindados e ele devia ter motorista. Talvez, o plano de hoje fosse simplesmente observar e projetar um plano melhor. Talvez ele devesse treinar com armas de fogo ou algo do tipo.

Foi então que, depois de apenas trinta minutos desde o momento em que havia chegado ao ponto de ônibus, que ele recebeu a mensagem: “Nos adiantamos um pouco. Apresse-se. Darei três piscadas com o farol dianteiro.” e passou a placa do carro. Pela mensagem foi que ele entendeu. O informante era o próprio motorista do automóvel oficial! Foi nesse momento que ele sentiu toda uma ansiedade diferente. A missão não era tão complicada assim. Ainda assim, pensou, como faria?

Nesse momento, enquanto ele refletia sobre como executaria seu alvo, viu o carro preto com a placa oficial se aproximando. Parou do lado do ponto de ônibus e esperou. O carro parou onde estava e ele entrou no banco de trás, empurrando para o lado o homem que ali estava.

- Ei! Ei!, o que é isso? Rodolfo, por que esse homem está entrando no carro? Quem é você?

Mas o carro partiu. O motorista trancou as portas pela trava de segurança e Cleber tirou a faca da parte de trás da calça.

- O que é isso? Quem é você?

- Sou o Cobrador. Trabalho para a DANTE.

- Mas eu não devo nada,...

- Me desculpe, é somente meu trabalho.

Cleber impulsionou o corpo para a frente empurrando os braços do homem sobre o banco com o peso de seu corpo. Pegou a faca e apontou para seu alvo que gritava no carro tentando abrir a porta travada. Os sons ecoavam enquanto a ponta metálica se aproximava. Quando o cobrador chegou bem perto do corpo, soltou um pouco as mãos liberando a pressão e fez uma grande força até penetrar com a ponta do facão no peito, dois dedos abaixo do mamilo esquerdo, onde estaria o coração. Lentamente forçou o corpo mais e mais. Com a mão livre, pressionou a boca de seu alvo, avançando com a cabeça, até parar com a cabeça ao lado da do homem, sua boca ao lado da orelha, e sussurrou: “Desculpe-me”. Em seguida forçou a faca até que ela entrasse fundo no peito do rapaz agonizante. Puxou a faca lentamente, um prazer contido, o som da faca era como uma nota de violino, como um sussurro, como uma pintura. Continuou segurando a boca do homem e pressionando-o contra seu corpo enquanto ele estremecia com a dor e com o desespero. Seus olhos foram lentamente se tranquilizando até que, por fim, parou de respirar. O cobrador, então, se arrastou um pouco pelo banco, colocando o corpo moribundo para o outro lado. No momento em que o carro parou no farol, Cleber abriu a porta e deixou o veículo. “O motorista deve ter um plano dele.”, pensou. Seguiu seu caminho como se nada tivesse acontecido, descendo a primeira rua que viu. Caminhou até encontrar um ponto de ônibus e tomou o primeiro que passou, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Estava cheio, mas não lotado. Por sorte o ônibus ia para o Terminal Santo Amaro, de onde poderia tomar o metrô na linha cinco e seguir viagem.

Chegou tranquilamente em casa por volta das quatro da tarde. Tomou seu banho e trocou o terno e os sapatos por um bermudão e chinelos. Sua esposa não estava. Devia estar no Shopping. Suas filhas estavam na escola. Pegou uma cerveja e se sentou, zapeando os canais na televisão. Depois de algum tempo, passou por um que lhe chamou a atenção. Era um plantão de notícias desses de emergência. Estava dando a informação que o filho do secretário adjunto da secretaria de segurança pública do estado de São Paulo havia sido morto. Uma única facada no peito. O carro estava dentro do Palácio dos Bandeirantes e o motorista não havia sido encontrado. As mãos de Cleber começaram a transpirar imediatamente. Seu coração foi a mil, sua testa começou a suar. Não, ele não sentia medo nem um tipo de desespero. Era uma satisfação. Uma felicidade pela notoriedade e reconhecimento de um trabalho bem feito. Sentia-se como se estivesse ganhando o prêmio Nobel ou o Oscar. Fez seu serviço sem manchas ou marcas, sem pistas. Algo notável. Recostou as costas na poltrona e deu um bom gole na cabeça, quase lacrimejando com a satisfação do que havia feito. Pouco tempo depois, pegou seu notebook e entrou no facebook. Ficou passando de mensagem em mensagem enquanto pessoas falavam da barbárie e do caos que se instaurara no Palácio do Governador. Outros, porém, questionavam se o assassino não havia feito justiça, uma vez que o secretário adjunto havia empregado seu próprio filho em algum cargo oficial. Mas Cleber não se importava com essas questões políticas. Ele somente se interessava no tanto que a notícia tomava forma. Ela aumentava de jornal em jornal, passando desde os que somente relatavam a notícia até os que supostamente ressaltavam detalhes sórdidos. Alguns eram reais, é certo, outros somente questionavam e faziam conjecturas sobre como algo assim poderia haver ocorrido.

Mas os mais sensacionalistas diziam que haviam sido cerca de dez facadas no peito. Desses Cleber não gostou. O que ele mais havia gostado em seu trabalho era a limpeza com que havia sido feito. Claro, teve que confiar na operação a qual nem sequer havia sido comunicado, mas foi satisfatório. Foi excelente. Foi estranhamente simples e ao mesmo tempo prazeroso. Foi como ouvir uma música singela e triste que, em dado momento, vem uma explosão. Ele não queria saber de política, de como isso afetaria o rumo do partido ao qual o secretário pertencia, ou quais seriam os efeitos disso na próxima eleição. Era apenas um trabalho.

Pegou o celular que a DANTE havia dado e ligou para o número que o André havia passado. Tocou uma, duas, três vezes. Na quarta atendeu uma voz de mulher.

- Alô.

- Alô. Esse celular pertence a um credor. Pague sua dívida.

SILÊNCIO…

- Você, seu assassino… - A mulher gritava do outro lado, chorando.

- Desculpe-me. Sou apenas um cobrador. Pague sua dívida. - E Desligou.

Refletiu um pouco sobre a palavra… “Assassino... Não. Eu somente sou um cobrador.” Jogou no lixo a garrafa de IPA e pegou outra. Serviu em seu caneco decorado e bebeu com gosto, enquanto mudava a televisão para o canal de desenhos.

No dia seguinte, pela manhã, iria até a DANTE no centro pegar seu dinheiro, em espécie. Também tinha agendado uma reunião com o contador que lhe auxiliaria a como investir seus valores sem se preocupar com o fisco. Talvez tivesse uma nova missão. E a faria com excelência pois, como veio a descobrir nos meses anteriores, era para isso que ele havia nascido.



Link para as próximas partes:

Parte III

Parte IV

terça-feira, 15 de março de 2016

O Cobrador - Parte I



Era um fim de tarde frio, nublado e úmido. Daqueles típicos paulistanos. A Rua Vinte e Quatro de Maio estava repleta. Já eram quase cinco e trinta da tarde e as pessoas estavam saindo apressadamente de seus serviços, dirigindo-se, em sua maioria, à Praça da República ou ao Vale do Anhangabaú. Mas não Jorge. Ele ia em outra direção.

Antes, na hora do almoço, o jovem operador de telemarketing mulato de vinte e cinco anos, duas filhas, uma esposa e um apê financiado em São Miguel Paulista havia encontrado com André, um companheiro da universidade. Fazia sol, mas já prenunciava o frio. O restaurante, um desses gordurentos padrão do centro em que Jorge havia almoçado não fora o lugar. Também não foi nas ruas sujas onde ele passeia depois do almoço. Foi, na verdade, um encontro despropositado.

Jorge, descendo pelo outro lado da praça, encontrou um café muito bacana, desses chiques, e resolveu que hoje ia gastar um dinheiro num cafezinho bom. Ele não faz isso sempre, claro. O dinheiro que ele e sua esposa ganham, mal dá pra pagar o financiamento do apartamento e sobrar para as compras do mês. O que acontece é que hoje Jorge se sentia particularmente deprimido e desiludido. Depois de mais de um ano na empresa, pensava que ia ser promovido ou pelo menos ter uma melhora no salário, mas não. Quando falou com o gerente nessa manhã, ele consultou o sistema e, então, negou sumariamente o aumento com um sorriso irônico no canto do rosto e um “Vá Trabalhar” logo depois. Porém, por coincidência dessas que o jovem mulato apelidou de “coincidências intencionais”, Serginho, branco, dezenove anos, sem filho e que vive com os pais no Tatuapé acabou sendo promovido supervisor da seção e agora seria o chefe de Jorge. Ele imaginava se o sistema havia indicado que essa ação era melhor para a empresa.

E, por isso, Jorge entrou naquele lugar chique. Era uma espécie de consolo. Ou talvez, de revolta pessoal. Pediu um expresso e um pão de queijo e no caixa lhe pediram todo o dinheiro que tinha em sua carteira. “É melhor esse negócio ser bom mesmo.”, apesar de que a música clássica de fundo, as poltronas e o ar condicionado já pudessem valer aquele preço. Sentou-se confortavelmente, meio sem jeito, numa das poltronas e aguardou que a mocinha trouxesse seu pedido. Ficou ali, apreciando as pessoas com seus ternos e gravatas, seus sapatos lustrosos e celulares modernos. Todos pareciam estar sorrindo, como que em um ritual pós-almoço cotidiano. Todos pareciam incomodamente felizes. Foi aí que ele se surpreendeu. Uma pessoa de uma outra mesa o encarou e se levantou. Veio em sua direção e parou em pé ao lado da mesinha enquanto a mocinha servia o pedido de Jorge. Jorge ficou meio sem jeito e o rapaz quebrou o gelo:

- Boné, é você? - Boné era o apelido de Jorge no tempo da faculdade. Haviam dado esse apelido para ele no segundo ano por que ele sempre estava de boné. Ninguém soube que o boné foi por causa e um acidente que ele teve quando a casa do pai dele desabou no barranco e ele quase morreu. Teve vários pontos na cabeça e até hoje a cicatriz. Mas eram bons tempos aqueles da universidade. Foi o tempo na vida de Jorge em que ele ainda acreditava no mundo. Diziam que menino pobre tinha que se esforçar pra entrar na pública. Ele não foi um desses. Entrou numa particular meia boca que mal conseguia pagar. Mas ia conseguir vencer na vida assim mesmo. Ah, como ele era tolo naquela época. O rapaz continuou: - Claro que é você. Tenho certeza. Como era mesmo seu nome… Jorge, não é?

- Isso, isso mesmo! - Disse Jorge enquanto colocava açúcar em seu cafezinho. - E você? Quem é?

- Sou o André... Da universidade, lembra de mim? - Jorge se lembrava vagamente dos amigos da faculdade. Quando estava no penúltimo ano sua filha nasceu. Foi quase por milagre que conseguiu concluir o curso. Então, resolveu fingir:

- Claro, claro que me lembro. Senta aí.

- Cara, a quanto tempo! Nunca mais te vi. O que aconteceu contigo?

- Sei lá cara… Trampando, trampando e trampando mais. Duas filhas pra criar é osso.

- Puta merda! Meu, duas filhas já? Que coisa... E onde ‘cê ‘’tá trampando?

- Na Falasse… Telemarketing ativo.

- Cara, que bosta. Justo você? Lembro que você era um dos melhores nos tempos de facu. - Ver o outro rapaz menosprezar seu trabalho só o deixou mais para baixo. Então olhou. André vestia um terno bonito, caro, com colete, gravata e sapato lustroso. André pertencia a esse lugar. Jorge não.

- A vida parece ter sorrido pra você então, né? - Disse Jorge, tentando mudar o assunto.

- Mais ou menos isso. Tenho uma filha, mas agora moro em Higienópolis. Vim aqui no “centrão” hoje visitar um cliente, mas não aguento mais essa vida. Só que tive que mandar embora meu representante comercial daqui dessa região e não teve outro jeito. Tive que vir para cá.

A verdade é que depois de ouvir “Higienópolis”, Jorge não prestou muita atenção nas outras coisas. “Caramba! Hi-gi-e-nó-po-lis! Só as elites!” É quase como se fosse o sonho do próprio Jorge. Sem querer, esses pensamentos foram ficando em voz alta e Jorge disse:

- Só falta você dizer que é o dono da empresa…

- Sou, sou sim. - Respondeu André. - Com outros dois sócios. Montamos a empresa com uma ideia que tivemos no último ano da facu. Lembra daquele monte de porcarias que comíamos naquele tempo? - “Como esquecer! Comi uma porcaria assim ainda hoje”, mas se conteve e apenas afirmou com a cabeça e deu mais uma golada no cafezinho. - Então... Numa dessas, num desses botecos, encontramos com o Telório da turma de economia. Ele tava fazendo o trabalho de graduação e o Dennis e eu colamos nele. Era um método automatizado para gestão de empresas. Cara, recebemos um financiamento gigante pra por a ideia no ar. Um ano depois da graduação recebemos nosso primeiro cliente grande. E essa é a história da DANTE.. Já ouviu falar? - Se Jorge já tinha ouvido falar? A própria Falasse era cliente da DANTE.

- Você tá brincando, né? Quer dizer… “A” DANTE Consulting?

- É meu caro... DANTE é uma junção do começo dos nossos nomes. A ideia deu tão certo que já tem dois anos que saímos do país. Hoje, além de termos uma boa amplitude no mercado nacional, também vendemos para Peru, Venezuela, Colômbia, Paraguai, México e, mês que vem, estaremos no mercado americano. - O jovem operador de telemarketing ficou estupefato. Era impressionante.

- Tá… Mas como vocês fazem? O software de gestão de vocês eu já vi na Falasse. Ele é impressionante! Trava indicadores desde a operação até os níveis estratégicos! Inclusive, creio que hoje não recebi um aumento por causa desse sistema estúpido.

- Ei, vai com calma… A Falasse nem é nosso melhor cliente. O sistema dele está mal configurado e eles pagam somente o plano básico. Mas em clientes melhores, a gente vê a “mágica” funcionar.

- Legal cara. Legal mesmo! Olha… Eu tenho que ir. Já passou do meu horário do almoço, e…

- Não, não, eu entendo… Mas Jorge, por que você não faz o seguinte… Passa lá no nosso escritório daqui do centro depois do trabalho pra a gente bater um papinho…

- Não vou poder - respondeu Jorge meio instintivamente…

- E por que? Olha… Vai ser uma oportunidade de ouro. Poderemos conversar um pouco… Quem sabe eu não te ajudo a sair dessa vidinha?

- Mas…

- Cara. Aparece lá. Às seis da tarde. - O jovem engravatado retirou um cartão da carteira, onde dizia “André Nunes - Diretor Comercial”, e o logo da DANTE, além de um número de celular e uma direção na Rua Sete de Abril.

- Tá bom, vou ver se consigo. Às seis, né?

- “Vou ver se consigo”? Jorge, a oportunidade não vem assim para todos. Aparece por lá.

Jorge concordou com a cabeça e apertou a mão de André antes de sair apressadamente pela porta comendo o último pedacinho de seu pão de queijo.

O operador de telemarketing tinha orgulho. Tinha brio. Entendia que as coisas não tinham saído tão bem em sua vida, que passava agora por um momento de complicações, de turbulência (como se ele já houvesse voado de avião para entender essa metáfora), mas que ia conseguir se levantar. E, além de seu orgulho, a arrogância e prepotência do antigo amigo da faculdade era impressionante.

Porém, estava cansado. Cansado de lutar uma luta desleal, cansado de se deixar ser empurrado pela vida. Cansado da pinga barata da padaria, da cerveja com gosto de mijo, da televisão velha, do celular velho, do carro acabado, das contas vencidas. E foi esse cansaço que fez com que, ao invés de dirigir-se para o metrô República como fazia todos os dias, estava indo na direção daquele cartão. Ligou para a esposa e disse que não demoraria, que ia ver uma oportunidade de trabalho. Teve que escutar Luciana de oito anos pedindo que o pai trouxesse um chocolate e Larissa de três chorando de fome antes de desligar.

Foi assim que chegou ao prédio reformado às cinco para as seis. Ao entrar, no saguão, notou que quatro dos cinco andares era da DANTE. “Uau!”, pensou ele. Foi à portaria e falou com o recepcionista que rapidamente se comunicou com outra pessoa que autorizou a subida. Após o registro e o elevador, chegou a outra recepção no quarto piso. A atendente já estava de saída e pediu a Jorge que aguardasse que o André já viria falar com ele.

Após longos e tediosos minutos folheando uma revista de negócios, André saiu de uma sala com um senhor oriental e uma senhora magrela. Se despediu deles e ao fechar a porta, veio na direção de Jorge.

- Fala meu amigo. Que bom que veio. Desculpe-me a demora. Me acompanhe por favor. - Jorge apertou a mão de André e o seguiu até a sala indicada. Uma sala de reuniões grande, com uma mesa comprida e várias cadeiras ao redor. Na lousa era possível ver alguns gráficos e rabiscos feitos na última reunião. Se sentaram e, sem aguardar, André seguiu:

- Jorge, sei que pode parecer agressivo, mas qual seu salário atual?

- Ah, relaxa. Não é tão “agressivo” assim. - Mas Jorge se sentiu sim um pouco incomodado com a pergunta. - Ganho mil quatrocentos e cinquenta reais. Registrado.

- Por mês? - André pareceu um pouco indignado. Ainda assim, Jorge respondeu:

- Sim, por mês.

- Tá. Você tem alguma experiência no ramo de cobrança?

- Bom… Trabalho com Telemarketing Ativo no momento, mas não, não tenho experiência com scripts de cobran… - André o interrompeu

- Não, não. Quero dizer no ramo de cobranças presenciais.

- Você diz recebendo clientes para negociação?

- Mais ativo, na verdade. Visitando clientes não pagadores.

- Não. Não tenho nenhuma experiência.

- Bem… O que me diz de fazer um teste? Simples assim. Você vem comigo e faz a cobrança. Se fizer bem o trabalho e gostar, o emprego é seu. Senão, é só ir embora.

- ‘Tá, mas qual o salário?

- Não trabalhamos com salário para esse serviço. Na verdade, não estou contratando alguém para a DANTE, mas sim para uma das minhas atividades “paralelas”. O pagamento é por comissão. Para esse trabalho, se você conseguir que o cliente pague o que deve, te pago dez por cento do valor. - Jorge olhou desconfiado.

- E estamos falando de quanto exatamente?

- O valor devido nesse caso é de duzentos e cinquenta mil reais. Se você conseguir o pagamento, vinte e cinco mil são seus. O que me diz?

Jorge sabia que deveria ser algo ilegal. Sabia que iria por em risco sua vida. Mas o dinheiro era bastante. Era mais do que ele ganharia em dois anos. Nem hesitou:

- Feito. Mas gostaria de saber um pouco mais do que se trata e,... - Interrompido mais uma vez.

- Não! Quanto menos você souber, melhor. - Levantou-se. - Vamos?

- Já!?

- Sim, já! Seu “teste” está na Rua Santa Ifigênia e só estará lá até as oito da noite. - Já eram dez para as sete. - O tempo urge.

Jorge refletiu um pouco mais, mas notou que não tinha mais volta. Foram.

Seguiram pelas ruas sujas do centro, com sua população de mendigos e beberrões, com seus cine-pornô e trabalhadores, com o cheiro de esgoto e fumaça e viraram a esquina da Ipiranga com a Santa Ifigênia apressadamente. foi então que André diminuiu um pouco o passo.

- Jorge, de outras vezes espero que venha melhor vestido. Mas para o trabalho de hoje vai servir. ‘Tá vendo aquele prédio? - E apontou para um cor de creme, antigo. Sem esperar resposta, prosseguiu: - Suba pelas escadas até o segundo andar. Vá até a sala vinte e três e procure pelo Marcão. Ele tem uns trinta anos, quase da sua altura, cicatriz no lado esquerdo do rosto. Suba e me traga a maleta com o dinheiro. Esperarei aqui. - André olhou ao redor e puxou um canivete longo de seu bolso. Entregou para André. - Mais uma coisa. Além da maleta, preciso de um dedo dele como juros do atraso.

O rapaz olhou assustado. Pegou o canivete meio que por instinto, mas balançou a cabeça.

- Cara, como assim arrancar um dedo? ‘Cê ta louco?

- Guarda esse canivete seu animal! - Agrediu André. - Vai senão eu chamo os guardas ali na próxima esquina e falo que você ta tentando me assaltar. Agora vai! Vai logo! E nem pense em fugir com o dinheiro senão eu acabo com tua raça, mané.

Jorge se afastou meio de costas, e saiu. Sentiu-se com muito medo, acuado e quase chorando. Sentia-se mal, estômago embrulhado, ânsia de vômito, suava frio. Caminhou olhando para todos os lados e todas as direções. Pareceu uma eternidade mas, por fim, chegou ao prédio.

Subiu as escadas zonzo, brincando com o canivete no bolso. Olhou as portas no segundo andar. “vinte e sete, vinte e cinco, vinte e três. Fácil demais encontrar.”, refletiu ele. Respirou fundo e, vendo que não havia mais como sair dessa, pensou no dinheiro, Pensou em sua filha passando fome. Pensou em poder pagar uma escola para cada uma, em terminar o financiamento da casa. Pensou em sua esposa, em suas frustrações. E, sentiu uma força que não possuía antes. Um grito de frustração, de rancor, de ódio com a sociedade. Bateu forte na porta com o cabo do canivete.

- Já vou. - Escutou do outro lado.

Bateu forte novamente.

- Que inferno, já vou! - Escutou outra vez. Jorge Estava ansioso. Estava suando frio, era uma sensação vertiginosa. Não sabia se fugir ou se esperar a porta abrir. E no momento de dúvida, as trancas da porta começaram a mover-se. Quando a terceira e última tranca foi retirada e ele viu a maçaneta girar, sem pensar duas vezes, com o canivete ainda na mão, Jorge Impulsionou o corpo para trás e em seguida para frente, levantando o pé até o meio da porta e dando um coice violento. Ela bateu na cara do homem atrás dela, que soltou a maçaneta e caiu encostando na parede. Jorge segurou a porta no retorno e empurrou mais uma vez para frente, abrindo-a. Viu estatelado no chão o corpo do moço da cicatriz. Havia desmaiado com a pancada na cabeça. Invadiu o apartamento e viu que o rapaz trabalhava com algo relacionado com computadores. Pensou rapidamente virando os olhos e viu vários cabos de rede azuis e outros negros. Pegou alguns e amarrou as pernas e os braços do rapaz. Ainda inseguro e ofegante, arrastou-o e sentou-o com dificuldade na cadeira, amarrando também o pescoço ao encosto.

Fechou a porta assustado, quase chorando. Respirou fundo e pensou “Meu Deus, o que estou fazendo?” Olhou ao redor e buscou uma jarra com água que estava na micro cozinha do apartamento. Jogou a água na cara do homem da cicatriz. Ele despertou assustado.

- Marcão? - Disse tentando soar amedrontador, mas na verdade parecendo um medroso. - O-o André mm-me mandou aqui. Me entrega a maleta.

- Cara, o que é isso? Você invade a minha casa e… - Assustado, Jorge falou num tom quase sombrio.

- Fala logo onde está que eu vou embora. Não fala e - Abriu o canivete. - e… e eu fico.

- Seu puto! A maleta ta ali. - Apontou o com o queixo. - Minha testa ta sangrando seu imbecil. Isso não vai ficar assim! Pensa que eu não guardei seu rosto? Guardei sim! Isso não vai ficar assim! Você vai ver!

Jorge pegou a maleta e hesitou. Precisava concluir o trabalho. Tremia com o canivete na mão. O outro soltava imprecações e xingamentos. A garganta presa no encosto da cadeira estava vermelha. Ele não sabia como arrancar um dedo. Ficou com medo do cara se mexer. Mas lembrou da sua filha chorando. Das noites sem dormir, das dificuldades da vida. Da conta no vermelho no banco. Deu uma pancada bem forte na cabeça do Marcão, sem pensar. Desacordou o rapaz novamente. Pegou um trapo e enfiou na boca dele para que não gritasse. Amarrou as mãos ao encosto da cadeira e passou outro cabo na barriga do cara amarrando-o à cadeira ainda mais forte. Analisou o fio do canivete e viu que era bem afiado. Pegou o dedo indicador da mão esquerda, o que parecia mais fácil de pegar, passou a lâmina por entre o médio e este dedo e girou, puxando, cortando o dedo bem na junção com a mão. Puxou freneticamente, serrando o dedo e conseguiu arrancá-lo. Tudo estava escuro, silencioso e, de uma só vez, ouviu o grunhido do outro homem. Um som seco, abafado pelo pano na boca, com lágrimas nos olhos. O sangue escorria de onde o dedo fora arrancado. O rapaz se debatia enquanto lutava contra os cabos e contra o pano dentro de sua boca. Num momento de pena, tremendo muito, Jorge, chorando, pegou um pano de prato e colocou nas mãos amarradas do outro homem, tapando o sangramento. Mostrou o dedo para ele e, sem saber o que dizer, apenas pronunciou aquela palavra que nunca mais esqueceria:

- Obrigado!

Saiu do apartamento deixando Marcão lá, amarrado, em situação deplorável. Quis se importar com ele, mas não podia fazer mais nada. Saiu e, quando chegou ao térreo, se deu em conta que havia carregado o dedo ensanguentado na mão e o canivete aberto na outra. Se encontrou com André que rapidamente se aproximou.

- Fecha isso seu babaca. Entra aqui! - E abriu uma porta de uma pequena sala no fundo do corredor. Eles entraram. André pegou o dedo da mão de Jorge e guardou num lenço que tinha no bolso. Abriu a maleta e conferiu visualmente o dinheiro. Retirou ali mesmo, num quartinho no meio da Rua Santa Ifigênia vinte e cinco pacotes de notas de cem.

- Tome. Aqui está sua parte. Parabéns. Está contratado. Apareça no escritório amanhã para os detalhes de nosso acordo. Vista um terno negro, camisa branca e gravata negra. Sapatos lustrados. Ah, e chegue bem cedo. Agora vá embora. E pode ficar com o canivete de brinde.

Jorge ficou vendo André sair do quartinho com a maleta, indo embora apressadamente. Guardou o dinheiro como pode, espalhando em partes de suas roupas e saiu.

Parou no primeiro boteco que encontrou e pediu um bombeirinho e depois outro. Quando chegou em casa, já era tarde. Beijou suas filhas, sua esposa e foi se banhar. Chorou pelo que fez e pela visão do desespero do outro homem mas, estranhamente, sentia prazer nisso. Um prazer estranho, sórdido. Uma realização por haver conseguido realizar a tarefa, um orgulho pelo dinheiro conquistado. Dormiu e teve bons sonhos nessa noite.



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Parte II

Parte III

Parte IV

sexta-feira, 11 de março de 2016

Contigo quero estar!




Eres da luz a semente
E tua face resplandece
O brilho que a ti pertence
Tua força enaltece
Mas não fazes de mim temente
Nem ofusca o teu raiar
Uma certeza me trazes somente:
De contigo querer estar

Eres da pira, fogo potente
Que de calor envaidece
E teu ardor incandescente
A tudo que toca aquece
Mas não vagas erroneamente
Tampouco teimas em queimar
Uma certeza me trazes somente:
De contigo querer ficar

Eres brisa que, suavemente
Refresca e enternece
E teu soprar, irremediavelmente
Em tal momento esmaece
Mas não se vai tristemente
E nem esquecida poderia ficar
Uma certeza me trazes somente:
De contigo querer estar

Tal é tua força, naturalmente
Que prende em querer arrastar
Mas de tudo, fica somente,
que contigo eu quero estar.


segunda-feira, 7 de março de 2016

Caminho...



Ao caminhar pelo mundo demente,
Entre desterros e forças contrárias,
Eu descobri o saber entre párias
E que a vida ensina por sempre.

Vivi verões gloriosos e quentes.
Invernos pálidos, secos, gelados.
E encontrei o saber encrustrado.
Em cada época, era, e tempo.

Eu vi a força de ventos e mares,
Subi montanhas, desci em cavernas.
Fui a locais, respirei outros ares.

Amei e fui desejado, é certo,
Eu vivi, eu aprendi, eu fui sábio!
Somente para um dia perecer...


sexta-feira, 4 de março de 2016

Quanto custa?



O menino chega na banca de jornal e pergunta, apontando para a barra de chocolate:

- Quanto custa?

- Três reais. - responde o jornaleiro. O garotinho olha para as moedas na mão.

- Tó! - Diz entregando três moedas de cinquenta centavos ao vendedor.

- Aí não tem três reais.

- Tem sim!

- Não. Aí tem um e cinquenta.

- Mas tem três moedas…

- Só que são três moedas de cinquenta centavos, menino. Não sabe fazer conta não?

O menino fica zangado. Aponta para um pacotinho de balas.

- Quanto custa?

- Dois.

O menino fica pensativo.

- Faz por três moedas de cinquenta?

- Não.

- Ah faz, vai…

- O menino, não é não!

O rapazinho abaixa a cabeça e aperta as moedas na mão. Aponta para um outro pacotinho de balas.

- Quanto custa?

O jornaleiro respira fundo.

- Dois e cinquenta.

- Faz mais barato?

- Menino, não! Com um e cinquenta te vendo dez balas dessas aqui. - E aponta com o dedo.

- Nossa, tá caro, né?

- É.

- Vende quinze?

- Não. Vendo dez.

- Mas tá muito caro. O que mais você vende?

O jornaleiro dá o troco a uma senhora que pagava por sua revista e em seguida diz:

- Que dá para você comprar com essas moedas?

- Claro, né?

Olhando bravo, o jornaleiro diz:

- Só as balas.

- Mas… só aquelas? - E aponta.

- Sim. dez delas. Vai querer?

- Faz doze?

- Dez, menino.

O menino para e pensa. Vê então o pacotinho de figurinhas do brasileirão. Aponta.

- Quanto custa?

- Dois e cinquenta moleque.

- Não dá pra levar um pacotinho, né?

- Não menino, não dá.

O menino pensa novamente, olha as balas… Olha as figurinhas e tem uma ideia.

- O senhor me empresta um real?

- Mas menino, claro que não!

Abaixa a cabeça novamente. Fica pensando. Olha novamente para a barrinha de chocolate. Aponta.

- Quanto custa mesmo?

O jornaleiro respira fundo.

- Três reais, moleque.

O menino olha as moedas, sacode os bolsos, mas nada…

- Posso ficar devendo?

- Não.

- E por que?

- Não faço fiado.

O menino dá de ombros. Mostra a mão com as moedas para o jornaleiro.

- Tó.

- Vai levar as balas?

- Vou.

O jornaleiro separa dez balas no balcão.

- Pode pegar.

O menino pega cinco em uma mão e cinco em outra.

- Obrigado. - O menino diz e sai da banca. Na frente está um menino, de rua. Pedinte.

- Dá uma bala aí. - Ele diz para o menino. Ele olha para uma mão, olha para outra e aponta com uma mão para o menino de rua.

- Tó.

Abre a mão e solta as balas na mão do menino. Guarda as outras no bolso e sai andando para um lado. O menino de rua pega uma para chupar e guarda as outras.

- Valeu mano!

O jornaleiro sorri e guarda as moedas.



segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Vento



Haverá um dia em que, decerto
Um novo vento do sul soprará.
Alçará as areias do deserto
Prumos e níveis modificará.

A montanha irá desvanescer,
O carvalho potente ruirá.
E somente então iremos saber
Quem se curvará, quem perecerá?

Tolos são os que se opõem ao vento
Buscam manter imóveis suas paredes
Inertes ao turbilhão do advento

Nem a casa do mundo mais perene
Suportará conter fracionamento
Ante o sopro do vento sereno

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Ansiedade



“pã-pã-pã-pã-Pã-Pã-PÃ-PÃ-PÃ-PÃ-PÃÃ-PÃÃ-PÃÃÃ-PÃÃÃÃ-PÃ...”
“PACK”

Carlos bateu forte no despertador. “Cinco e quarenta e quatro”, pensou ele… Levantou apressado. “Primeiro dia no trampo novo!” Havia ficado quase quatro meses desempregado e ia começar hoje. mal podia acreditar. Era programador “Boa área, bons salários”, lhe haviam dito… Mas para seu azar, tudo correu errado na sua vida. Os gêmeos vieram e ele teve que correr de projeto em projeto, emprego em emprego. Na última empresa parecia que ia tudo bem, até que veio a crise. Foi mandado embora logo na primeira leva. Se consolou quando soube que outros companheiros também saíram. Mas agora, quatro meses depois, teve que aceitar um trabalho como analista programador júnior, reduzindo quase pela metade o salário da última empresa. E hoje era o grande dia. Entrou no banho correndo, pensando em tudo isso. Escovou os dentes, se vestiu. Camisa surrada, calça jeans e sapatenis.

Desceu e terminou de caminhar. O dia apenas amanhecia, mas ele nem notou. Chegou até o prédio do escritório e olhou o relógio: seis horas. Achou muito estranho. Deveria chegar às sete… conferiu o relógio de pulso: sete horas. Foi até a portaria. Somente o segurança no local. Perguntou as horas por conferir e ele disse: “cinco e cinquenta e oito.” Abismado, Carlos disse: “Como assim? Seu relógio deve estar errado…” E o segurança, com um sorriso no rosto, respondeu: “Impossível! Acabei de ajustar para o horário de verão…” Então, Carlos entendeu tudo… Saiu e foi até uma padaria que estava abrindo. Pediu uma média e um pão na chapa e se sentou numa mesinha livre para tomar café, rindo à toa e ajustando o relógio.

...Começou a ouvir, então um barulho… O movimento da padaria… Piscou uma, duas vezes e despertou. Havia cochilado! Eram sete e vinte e cinco e uma fila grande para pagar a conta. Pagou e correu. Chegou no prédio novamente às sete e quarenta, atrasado e com cara de sono. Ao chegar, o mesmo segurança… e mais ninguém! “Senhor… tudo bem?”, perguntou o segurança para Carlos que, apressando-se, disse: “Venho para a empresa Katnos, quinto piso, e…”, o segurança começou a rir e lhe disse: “Volte amanhã, senhor”. Carlos ficou estupefato. Como assim voltar amanhã. Foi ficando vermelho de raiva e já ia xingar o segurança quando seu celular tocou. Levantou a mão para o segurança em sinal de “espere” e atendeu, pois viu que era sua esposa. “Alô, amor, to com um problema aqui no escritório e…”, mas foi interrompido pela esposa do outro lado: “Amor, como assim escritório? Acordei e achei que você tinha ido comprar pão…” Ele já estava ficando doido. “Amor… eu vim trabalhar e tem algo muito estranho aqui…” A esposa respirou fundo e começou a rir, fazendo com que ele ficasse mais nervoso. Ia começar a gritar de vez, estava prestes a explodir, quando ela disse baixinho, o mais carinhoso que podia: “Amorzinho. Hoje é Domingo! Quando estiver voltando, passa na padaria e traz pão, ok? Beijos…”

Carlos pediu desculpas ao segurança que não se aguentava de rir e na volta passou na padaria e tomou o ônibus para casa...