segunda-feira, 19 de setembro de 2016

O Copista - Parte I

Balthazar se sentia mal. Acordara no porão do navio um pouco aturdido. Não se lembrava da última vez em que comera, tampouco da última vez em que havia tomado água. Sentiu então uma súbita vontade de vomitar, mas não saía nada. Sentia-se como se estivesse embriagado. No mesmo espaço no porão onde ele estava, havia outras seis pessoas apinhando-se em dois beliches que, sem que sua mente conseguisse compreender como, fizeram caber na estreita cabine da terceira classe. O jantar no dia anterior não havia sido servido e até agora nada de café da manhã tampouco. Sua barba estava horrenda, suas olheiras profundas e seus cabelos sebosos. Nunca havia morado em outro lugar que não em Floridsdorf; nunca havia saído de Viena; nunca havia precisado viajar de navio; nunca havia precisado fugir antes. Estava fraco, deprimido, sozinho. Sentia angústia e medo, doíam-lhe os joelhos e o peito. Tentava lembrar-se de sua mãe, só para recordar-se que ela havia morrido tragicamente dois anos antes. Seu pai havia ido à guerra vinte e poucos anos atrás e nunca retornou. Ela sofreu amargamente até seus últimos dias, pensando em como a vida poderia haver sido melhor se houvesse fugido com ele para outras terras. Mas eles não foram. Veio a guerra e ele se foi, assim como o dinheiro, a esperança e a alegria

Ele se lembrou então de sua esposa. Gertrud era jovem, pele alva, olhos grandes, brilhantes, cheios de vida. Se casaram na primavera de 1928 e no inverno de 1929 nasceu Minna, preciosa filha, linda, curiosa, de voz de cetim, cabelos ondulados e super carinhosa. Dois anos depois veio Otto, teimoso e inteligente. Passaram ainda mais quatro anos até que Robert nascera e mais quatro anos até que vieram os blindados alemães. Judeus como eram, tentaram fugir. Foram informados que os oficiais do Reich viriam naquela semana. Balthazar saiu do trabalho e comprou uma mochila adicional, como havia combinado com sua esposa. Esposo e pai dedicado como era, estava sempre comprando roupas novas para seus filhos e presentes para a esposa, mas acostumou-se a coser as suas antigas. Então, para viajar, precisaria de novas roupas. Voltou para casa logo depois. O plano era simples: Entrar, pegar o que ainda faltasse e sair. Ir até a estação central de Vienna, Tomar o trem até Villach onde se encontrariam com a irmã de Gertrud, Astrid, e suas duas filhas. Daí seguiriam para Genova na Itália, onde tomariam um navio para a Argentina.

Quando chegou, viu que os soldados estavam revistando sua casa. Por um momento não viu sua família. Se escondeu, tentando crer que eles teriam fugido, que estariam escondidos. Olhou novamente. Viu seus filhos e sua esposa no carro do exército. Aquele carro negro. Ele tentou correr. Tentou ir até lá, gritar, espernear, pedir auxílio, socorro, ou ao menos ficar junto com eles. Mas seu corpo não se moveu. Estava dominado por um pavor súbito que não lhe permitia fazer absolutamente nada. Em poucos instantes, os oficiais entraram no carro e se foram. Ele viu seus filhos e sua esposa serem levados e não fez nada. Não conseguiu. Desesperou-se. Correu o mais depressa que pôde até a delegacia, mas não teve coragem de entrar. Chorou e perambulou pela cidade até a estação de trem, onde comprou a passagem direto para Gênova. Não se preocupou em parar em Villach. Não se lembrou de Astrid. Havia um torpor em sua alma. Algo extravagantemente sórdido que o preenchia. Um desejo de auto consumação. Mas tal qual fizera com sua família, fizera consigo: Nada.

Deixou-se entorpecer gastando quase tudo que tinha em bebidas no trem. Bêbado chegou ao cais de Gênova no primeiro navio que sairia da Europa. Era o “Augustus” e dirigia-se para a cidade de Santos, Brasil. Mas isso não importava. Tampouco importava mais se ia viver ou não. E foi dessa forma que dormiu. Isso já havia sido a mais dez dias. Lembrar-se agora dessas coisas só fazia seu coração e seu estômago apertarem mais. Chorava mas não saíam lágrimas. Sentia medo, frio, sono, angústia. Sua cabeça doía. Saiu da cabine e caminhou pelos corredores dos porões até as escadas. Subiu até o convés do navio. Se ele se jogasse ao mar agora, tudo acabaria. Iria para o Olam HaEmet, seria exposto à verdade de seu crime e então seria purificado. Questionaria o próprio Deus que lhe colocou esse medo terrível em seu corpo. Seria, seguramente absolvido de seu último crime. Ao chegar ao convés, foi até a beirada da embarcação. Era noite e não havia ninguém ali. Era como um convite. O mar escuro a chamar-lhe. Mas ele não conseguia. Pular não era uma opção. Tinha medo demais. Ouviu, então, um ruído. Eram passos arrastados vindo da escuridão. Ouviu então uma voz vindo da mesma direção.

- Balthazar… Você não pulará. Não pode, não é mesmo? - E sorriu. Em seu desespero, ele tentou fugir, mas outra vez estancou e não saiu do lugar. A voz prosseguiu risonha:

- Fraco e pobre Balthazar. Não pode impedir seu pai de ir à guerra, não pode salvar sua mãe, não pode salvar sua família, esposa e filhos, não conseguiu parar para salvar sua cunhada e não conseguiu acabar com a própria vida. E agora segue para uma terra de famintos e desesperados. - O corpo já era visto através da penumbra da noite. Era esguio e estava bem vestido. Era jovem. Lembrava de como, em sua imaginação, Otto cresceria para se tornar um adulto. Criou um mínimo de coragem e balbuciou:

- Q-q-q-q-quem é v-v-v-você? - O senhor se sentou ao lado do agachado Balthazar.

- Quem sou eu? Ha! Meu amigo. Você me conhece. Eu sou a sombra atrás do olho do assassino e a desesperança na voz da vítima; sou o gosto doce na boca do estuprador e a desilusão no coração da estuprada; sou o desejo da traição e raiva do traído, o medo do covarde e a força do opressor. Sou aquele que tem vários nomes e se orgulha de todos eles. Mas a pergunta não é essa, não é mesmo? A real pergunta é o que VOCÊ quer, Sr. Balthazar Ondrak.

Por um momento ele não entendeu. Ficou absorto olhando para o homem à sua frente. A dor dilacerante em seu peito seguia mutilando-o por dentro. Teve raiva mas o medo era tão grande que ele não se movia. Olhou para o homem que sorria de forma sórdida. Timidamente, Balthazar respondeu:

- Quero minha família!

- Ora, vamos - retrucou o outro - Sua família? E o que faria com eles? Os abandonaria novamente como cães? Não. Acredito que há algo que queira mais, não é mesmo?

Balthazar pensou. Se pudesse se matar, se tivesse coragem para tal, não estaria assim, nesse estado.

- Quero coragem. Coragem para me matar.

- Vejamos… - disse o outro pensativo. - Isso eu posso ajudar. Mas como se eu te ajudar de uma vez você pode se matar e não honrar o pagamento, façamos um acordo. Você trabalhará para mim por mil dias a contar do dia em que pisar em terras brasileiras. Passados esses mil dias, te libertarei desse medo escravizador e te darei coragem o suficiente para se matar. Ou para fazer o que bem entender com ela. O que me diz?

- E… E o que… o que me garante que o senhor cumprirá sua promessa?

- E qual outra opção o senhor tem? Algum compromisso nesse navio ou no Brasil que eu desconheça?

Balthazar ficou quieto por um instante. Como não viu outra alternativa e como se lhe parecesse uma oferta justa, ele assentiu com a cabeça. Antes porém de dizer o tão esperado “sim” que selaria o acordo, perguntou:

- E que tipo de trabalhos eu deveria fazer para o senhor? E ainda mais em terras brasileiras. Eu nem o “brasileirês” falo…

- Lá, eles falam o português. E eu vou precisar de um copista. Alguém que copie alguns textos que possuo sob a técnica e método que vou entregar. Os textos estão em diversos idiomas e não necessito que os compreenda. Somente que faça as cópias necessárias da forma que eu mandar. Em seu milésimo dia, te sentirás corajoso o suficiente para acabar com a própria vida.

- Mas eu terei que me manter lá por esse período…

- Sim, e isso é contigo. Mas posso mexer uns pauzinhos aqui e ali.

- Bem… então, sim, eu faço o acordo.

- Esplêndido! Vá descansar meu mais novo amigo. Falta pouco para chegarmos ao Brasil.

Balthazar deu ouvidos a seu interlocutor e seguiu entrando para a escadaria que dava acesso aos porões do navio sem se dar em conta de que o outro senhor ria. Ria de escárnio e prazer pela missão cumprida. Haviam sido, afinal, anos de trabalho intenso e meticuloso para conseguir agora seu copista, o primeiro em terras brasileiras. Pequenas inserções de medo e traumas de infância foram formando um ser que, apesar de todos os esforços, era agora um covarde. E dessa covardia ele se aproveitaria bem.

A mão humana pode coisas impressionantes, coisas tão grandiosas que a de um ser como ele não seria capaz nem agora nem até o fim dos tempos.


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quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Por Mais



Por mais que plantes
Sempre há onde colher
Por mais que finjas
Sempre há o desmentir

Por mais que pressintas
Sempre há o imprevisto
Por mais que ponhas
Sempre haverá oposição

Por mais abjeto
Sempre há quem goste
Por mais incerto
Sempre há a fé

Por mais duvidoso
Sempre haverá certeza
Por mais icônico
Sempre há o ridículo

Por mais que morras
Sempre haverá a vida
Por mais que penses
Sempre haverá a paixão

Por mais que erres
Sempre há onde acertar
Por mais que sejas
Sempre há o “Ser”

Por mais que comas
Sempre haverá fome
Por mais que busques
Sempre haverá o que buscar

Por mais que percas
Sempre também ganharás
Pois a vida é perda e ganho
Por mais que se esperar.