Na varanda, acendi o cigarro. Era tarde da noite, talvez já fosse de madrugada. O interior escuro de meu apartamento atrás de mim e uma lua, bonita, quase cheia no céu. Apesar de estar sozinho agora, não conseguia mais fumar em casa. Hábito dos últimos vinte e dois anos, uma esposa, três filhos e dois cachorros, todos com algum tipo de aversão ao cheiro do cigarro. Sorri ao lembrar que cheguei a passar cinco meses sem fumar. Mas tive que voltar. Precisava dessa desculpa, dessa companhia insólita, desse espaço só para mim. O cigarro, ao afastar a todos, me transportava para mim mesmo. Dei uma tragada, olhei para traz e lá estava meu computador, outro companheiro da minha solidão.
Na vida virtual eu tinha um bom emprego em uma boa empresa, diferente da minha vida real onde não me conformava em ter que fazer o que fazia. E o que fazia mesmo? Ah sim, registrar notas fiscais de produtos, garantir que estes seriam colocados na prateleira correta no estoque, melhorar os processos do almoxarifado e catalogar cada um deles no sistema. Até tinha descoberto uma forma de melhorar o sistema. Consegui por em prática esse projeto e, em pouco tempo, me promoveram a coordenador onde eu tinha pessoas que passaram a fazer o que eu fazia antes e eu as olhava fazer, garantindo que fizessem seu trabalho da melhor forma possível. Mas era em uma multinacional! Em algum lugar eu escutei que deveria dedicar-me a trabalhos tais que me tornasse respeitável e útil à humanidade. Não conseguia entender como que ajudar a indiretamente empilhar caixas de produtos e dizer para um sistema que uma camiseta branca é “white” poderia me fazer respeitável ou útil. Era uma hipocrisia muito grande para que eu conseguisse aceitar.
Ainda no mundo virtual, tinha dois filhos lindos. Na prática, já faziam meses que nem Alberto nem Lucas me ligavam e eu, de tanto ligar, cansei. Alberto, o mais velho, já tinha esposa e morava na Lapa, perto do meu trabalho, mas longe do meu caminho, então nunca passei lá. Nunca fui visitá-lo em sua casa. Na última vez que nos falamos, a uns quatro meses, sua esposa ia se formar. Sei que ela se formou por que fiz questão de colocar um “gostei” no álbum de formatura no facebook, mas não escrevi nem parabéns. Quanto a Lucas, esse morava em Campinas e estava numa república na UNICAMP. Estudava o último ou penúltimo semestre de ciências sociais e dizia que queria ser político. Tinha vindo me visitar no começo do ano, e me ligou tem uns dois meses. Perguntou se eu estava bem e pediu dinheiro para sei-lá-o-que da faculdade. Transferi para sua conta, orgulhoso de poder ajudar meu filho, no dia seguinte. Mas a verdade é que o único filho que eu visitava com certa frequência era Miguel. Ele sempre teria os mesmos catorze anos. Estaria sempre deitado, descansando. Não tinha mais fotos em facebook ou instagram, não era mais visto por aí no mundo virtual. No fundo, mesmo não estando mais aqui, ele era o mais real que existia perto de mim. Na morte fria abaixo da lápide não havia a hipocrisia dos sorrisos mundanos. Era o que era e ponto.
Dei mais uma tragada no cigarro, virando-me para a sacada, apoiando-me no parapeito. Lembrei de Rafaela, minha esposa… ex-esposa, e ri. Em nossas fotos, elogiadas, somos civilizados e compartilhamos momentos felizes ao lado de nossos filhos. O último havia sido o natal do ano passado em que acabei indo passar com ela, suas irmãs e sua mãe para poder estar um pouco com meus filhos. As fotos são lindas. Todos perto da árvore, abrindo presentes, abraçando-se e com chapéus de papai noel na cabeça. O álbum ficou tão legal que ninguém se deu em conta que nas fotos tiradas após as onze da noite eu já não estava mais lá. Teve até um amigo meu do serviço que colocou “gostei” em uma dessas fotos sem nem se dar em conta que eu não aparecia nela. Me lembro como se fosse agora. A dona Maria Clara, mãe da Rafaela, dizendo para a Marina, sua outra filha, irmã mais nova da minha es… ex-esposa: “Se esse traste aí não tivesse matado o Miguel, ele estaria aqui conosco. Nem se separado teriam…” Juro que tentei surtar, tentei gritar, espernear, ir de encontro com aquela velha louca e dizer um monte de coisas, mas a verdade é que olhei para Rafaela que tinha os olhos molhados e me segurei. Alberto não escutou, ainda bem! Ele sempre foi o mais esquentado. E Lucas correu para segurar a mão de sua mãe. Eu? Ah! Minha experiência profissional me ajudou nesse momento… “Era apenas mais uma caixa a empilhar, mais um produto a classificar e guardar em alguma prateleira.” Me levantei, fui até Rafaela e lhe disse que o restante de meus presentes estavam marcados com nomes, que ela fizesse o favor de entregar. Saí, entrei em meu monza velho e voltei para casa. Acho que fumei uns três cigarros no caminho da Vila Alpina até o Tatuapé. Nem me dei em conta de chegar em casa e automaticamente ligar a tv e pegar uma latinha na geladeira. Depois da sétima cerveja e da televisão passando um monte de coisas sem sentido, adormeci no sofá e, para não ter um segundo problema desses em menos de uma semana, me coloquei à disposição para trabalhar no plantão da véspera de ano novo.
Mais um trago e o cigarro estava na metade. Bati as cinzas ao vento e olhei o condomínio em que morava. Fiquei imaginando se Miguel teria sofrido ao cair. Ah, eu daria de tudo para estar com ele nesse momento. O teria segurado forte e gritado com ele, teria trazido ele de volta de alguma forma. Depois da reforma no apartamento, não recolocamos as grades. Todos já estavam grandes. Miguel já tinha doze e não era mais uma criança. A verdade é que aquelas grades atrapalhavam a vista e nem Rafaela nem eu as queríamos mais. Já nos sentíamos libertando-nos do fardo de pais. Miguel não havia sido planejado e devo confessar que não queríamos que ele tivesse vindo. Dois já haviam sido suficientes. Porém, assim que o vi quando a enfermeira me chamou no hospital, me apaixonei por ele. “Valeria a pena”, pensei naquele momento. Tentamos dar para ele mais que os outros tiveram. Melhor escola, melhores brinquedos, melhores passeios, melhores condições. Mas não bastou. Sem explicação, sem foto, sem sinais de depressão ou distimia, sem nenhuma tristeza ou solidão aparente, numa tarde de sol, quando sua mãe tinha ido ao mercado, ele chegou da escola, largou a mochila no meio da sala e pulou janela abaixo. O seu Carlos, porteiro aqui do prédio, me ligou dizendo que eu tinha que ir para casa por que “tinha um problema.” Ele não me disse na hora, entendo suas razões, mas saí correndo ainda assim, angustiado, pensando que algo deveria haver passado com Rafaela. Nem avisei ninguém no escritório e também ninguém me ligou. Depois de mais de duas horas, um ônibus, um trem, um metrô, vinte e cinco ligações perdidas no meu celular e uma baita dor de cabeça, desci na estação Tatuapé do metrô e parei para comprar cigarros antes de caminhar até em casa. No bar, estava passando um desses programas sensacionalistas de meio de tarde e a chamada dizia tudo: “Garoto se joga do décimo andar de prédio no Tatuapé em São Paulo.” Paguei o cigarro e saí, escutando o apresentador dizer algo como “...é uma barbaridade esses tempos em que vivemos…” Acendi um cigarro e caminhei tentando imaginar o sofrimento daquela família quando após algumas quadras, me deparo com polícia e repórteres em frente ao meu condomínio. Vários vizinhos conversando e, ao me verem, saíram do caminho abaixando suas cabeças. Estava me encaminhando para a portaria do prédio quando vi o Carlão apontando para mim enquanto se dirigia ao policial. Ele veio em minha direção e eu comecei a tremer. “Senhor Ricardo?”, “Sim”, respondi. “Venha comigo por favor.”
O resto foi um borrão. Fui interrogado, sedado, interrogado novamente e sedado outra vez. Meu filho foi enterrado no cemitério da Quarta Parada no dia seguinte. Não pude estar presente. Não pude consolar minha esposa que havia ido antes, sem mim, voltou antes de mim e, quando retornei ao que antes era nosso lar, já não estava. Ninguém me explicou, ninguém me consolou, ninguém esteve comigo quando fui chorar no quarto do Miguel, ninguém veio me abraçar. A única ligação de consolo que recebi foi do Marcos, meu chefe, dizendo que tomasse o tempo necessário antes de voltar ao trabalho. Dois dias depois, fui até o colégio do Miguel, perguntar se tinham alguma ideia do que tinha acontecido, mas a diretora só me disse que já tinha informado à polícia e à Rafaela tudo que teria a informar.
A angústia voltava a mim, se repetia como naqueles dias. Dei mais uma tragada no cigarro e limpei os olhos na manga da camisa. Já estava acabando, faltava pouco para o filtro. Em algum momento daquela semana absurda, tomei coragem e fui até a casa da dona Maria Clara. Rafaela me recebeu na porta. Perguntei o que teria acontecido e ela disse o que eu não queria ouvir: “Ele te ouviu. Ele ouviu quando você me disse que, se não fosse ele, poderíamos estar viajando e nos divertindo.” Tinha sido uma discussão no dia anterior à morte de Miguel. Eu estava tentando convencê-la a irmos viajar para o exterior. Sair do país. Eu já estava com as segundas férias por vencer. Mas ela dizia que não dava, que tínhamos que pagar as contas, a escola de um, os custos com a universidade do outro, e não me contive. Tudo aquilo que havia ficado guardado veio a tona. Miguel estava em seu quarto estudando e eu tive que dizer. Tinha que tirar aquilo de mim. Depois saí, fui tomar uma cerveja num bar e quando voltei, todos estavam dormindo. Quando Rafaela me disse isso na porta da casa de sua mãe, travei. Saíram lágrimas de meus olhos como nunca antes haviam saído. Me afastei dali e não olhei para trás. Na semana seguinte voltei a trabalhar, em duas semanas chegaram os papeis do divórcio, que assinei sem problemas. A casa seria dividida quando eu me mudasse mas me acomodei e não mudei. Não respondi às mensagens de luto e condolências no facebook, mas fiz questão de deletar uma a uma as fotos de meu filho mais novo. Não que não quisesse sentir sua presença, mas não queria lembrar-me mais do que aconteceu. Desse dia em diante, nunca mais a tristeza me abandonou. Larguei o luto, mas o luto nunca me deixou. Se tornou minha nova esposa e companheira. Somente depois de dois meses é que tive coragem de pegar a mochila do Miguel que ainda estava jogada no meio da sala, mas não a abri. Apenas levei até a lixeira e a joguei fora.
Outro trago no cigarro. Já sentia os dedos quentes. Não queria que ele acabasse, mas isso era inevitável. Inevitável como o tempo, como o dia, como a noite, mas não como a morte de Miguel. Esta poderia ter sido evitada. Repetia para mim mesmo que foram todos injustos e que eu não tinha culpa, mas a verdade era que me sentia culpado e não me sentia vítima da situação mas sim pagando por um mal que havia cometido. Quando me chamaram para a noite de Natal no ano passado, quis crer que queriam voltar a se aproximar de mim, quis acreditar que tudo voltaria a ser como antes. Comprei um belo vestido de flores para minha… para a Rafaela, busquei descobrir de que banda o Lucas gostava e lhe comprei um CD, também soube que o Alberto tinha que trocar de relógio e parcelei um em dez vezes no cartão. Queria que tudo fosse mágico, que tudo fosse especial. Até um presente bacana para a mãe da Rafaela eu comprei. Todos estavam felizes, mas faltava algo, faltava alguém. Na verdade a dona Clara somente externou o sentimento de todos ali presentes. Ela não tem culpa nenhuma. Houve um dia entre o mês da tristeza e a semana das desilusões, em que saí com um pessoal do trabalho para beber, coisa que a muito tempo não fazia. Havia uma mulher, uns vinte anos mais nova, que não parava de me olhar e de se insinuar para mim. Pensei que poderia ser feliz novamente. Cheguei a fantasiar, coisa que desde antes de casar-me não fazia. Lembrei-me de meu casamento. Bonito, é verdade. Era apaixonado por Rafaela e seria até o final. Duas letras “R” sobrepostas, indicando Rafaela e Ricardo substituíram os tradicionais noivinhos sobre o bolo. Esse era nosso símbolo. Ri com o cigarro na mão lembrando-me disso, assim como ri com o copo na mão enquanto a moça me olhava devolvendo o risinho, pensando que era por ela que a expressão de meus lábios se fazia feliz. Não ficamos juntos. Bruscamente me lembrei da mãe de meus filhos triste, inconsolável, chorando. Me levantei, deixei minha parte da conta na mesa e saí andando, transformando o sorriso sincero em um falso que tinha guardado para essas ocasiões, dizendo que tinha um compromisso e tinha que sair. Foi então que me dei em conta. Já não aceitava mais a felicidade em meu peito, nem a liberdade ou a alegria.
Terminei o cigarro e joguei a bituca fora. A observei voar pelo ar até não vê-la mais. Então, subi no parapeito olhando para o horizonte como quem quer ver mais longe, dei um passo adiante com o pé esquerdo e deixei o pé direito escorregar para frente. Não gritei, não chorei, não acenei, nem busquei parar. Senti um desespero profundo enquanto atravessava aqueles primeiro cinco andares mas, depois disso, me senti anestesiado. Então, subitamente, não senti mais nada.