segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Vento



Haverá um dia em que, decerto
Um novo vento do sul soprará.
Alçará as areias do deserto
Prumos e níveis modificará.

A montanha irá desvanescer,
O carvalho potente ruirá.
E somente então iremos saber
Quem se curvará, quem perecerá?

Tolos são os que se opõem ao vento
Buscam manter imóveis suas paredes
Inertes ao turbilhão do advento

Nem a casa do mundo mais perene
Suportará conter fracionamento
Ante o sopro do vento sereno

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Ansiedade



“pã-pã-pã-pã-Pã-Pã-PÃ-PÃ-PÃ-PÃ-PÃÃ-PÃÃ-PÃÃÃ-PÃÃÃÃ-PÃ...”
“PACK”

Carlos bateu forte no despertador. “Cinco e quarenta e quatro”, pensou ele… Levantou apressado. “Primeiro dia no trampo novo!” Havia ficado quase quatro meses desempregado e ia começar hoje. mal podia acreditar. Era programador “Boa área, bons salários”, lhe haviam dito… Mas para seu azar, tudo correu errado na sua vida. Os gêmeos vieram e ele teve que correr de projeto em projeto, emprego em emprego. Na última empresa parecia que ia tudo bem, até que veio a crise. Foi mandado embora logo na primeira leva. Se consolou quando soube que outros companheiros também saíram. Mas agora, quatro meses depois, teve que aceitar um trabalho como analista programador júnior, reduzindo quase pela metade o salário da última empresa. E hoje era o grande dia. Entrou no banho correndo, pensando em tudo isso. Escovou os dentes, se vestiu. Camisa surrada, calça jeans e sapatenis.

Desceu e terminou de caminhar. O dia apenas amanhecia, mas ele nem notou. Chegou até o prédio do escritório e olhou o relógio: seis horas. Achou muito estranho. Deveria chegar às sete… conferiu o relógio de pulso: sete horas. Foi até a portaria. Somente o segurança no local. Perguntou as horas por conferir e ele disse: “cinco e cinquenta e oito.” Abismado, Carlos disse: “Como assim? Seu relógio deve estar errado…” E o segurança, com um sorriso no rosto, respondeu: “Impossível! Acabei de ajustar para o horário de verão…” Então, Carlos entendeu tudo… Saiu e foi até uma padaria que estava abrindo. Pediu uma média e um pão na chapa e se sentou numa mesinha livre para tomar café, rindo à toa e ajustando o relógio.

...Começou a ouvir, então um barulho… O movimento da padaria… Piscou uma, duas vezes e despertou. Havia cochilado! Eram sete e vinte e cinco e uma fila grande para pagar a conta. Pagou e correu. Chegou no prédio novamente às sete e quarenta, atrasado e com cara de sono. Ao chegar, o mesmo segurança… e mais ninguém! “Senhor… tudo bem?”, perguntou o segurança para Carlos que, apressando-se, disse: “Venho para a empresa Katnos, quinto piso, e…”, o segurança começou a rir e lhe disse: “Volte amanhã, senhor”. Carlos ficou estupefato. Como assim voltar amanhã. Foi ficando vermelho de raiva e já ia xingar o segurança quando seu celular tocou. Levantou a mão para o segurança em sinal de “espere” e atendeu, pois viu que era sua esposa. “Alô, amor, to com um problema aqui no escritório e…”, mas foi interrompido pela esposa do outro lado: “Amor, como assim escritório? Acordei e achei que você tinha ido comprar pão…” Ele já estava ficando doido. “Amor… eu vim trabalhar e tem algo muito estranho aqui…” A esposa respirou fundo e começou a rir, fazendo com que ele ficasse mais nervoso. Ia começar a gritar de vez, estava prestes a explodir, quando ela disse baixinho, o mais carinhoso que podia: “Amorzinho. Hoje é Domingo! Quando estiver voltando, passa na padaria e traz pão, ok? Beijos…”

Carlos pediu desculpas ao segurança que não se aguentava de rir e na volta passou na padaria e tomou o ônibus para casa...



quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

O Guardião dos Desconhecidos

Chamas no horizonte, céu com nuvens alaranjadas.

I

Ouçam, meus amigos, escutem bem
A história que lhes venho contar
Pois àquele que conhece o além
Os céus, suas bênçãos hão de dar
A coragem que este homem tem
Fez demônios o medo sentir
E mesmo que não tenha um vintém
Até o mais poderoso fogo fez servir

Cavalgando pela estrada de Cal'em
Seu cavalo depressa a galopar
Uma garota, bonita e de bem
Ele se deu por encontrar
"Moça, conforto meu cavalo não tem
Mas a tempestade esta por vir
E para segurança que convém
Ele pode te servir."

"Agradeço cavaleiro de terras além
Mas tempestade aqui não vai passar
E eu, por ser pessoa de bem"
Sei que é aqui que vou ficar"
Disse a garota, sem vai-e-vem
Sem querer partir
Pois sabia muito bem
Que perder tudo não poderia permitir

Mas nosso herói, valente porém,
Não poderia assim sair
E ficou, como a um homem convém,
E da tempestade, não quis mais fugir.

II

“Conte-me cavaleiro, sobre essa tempestade,
diga-me mais sobre sua natureza
e explique-me de sua qualidade,
pois o céu está uma beleza!
E não parece haver possibilidade
De que água alguma venha
a não ser que, por alguma peculiaridade
O Sol água contenha”

“As torrentes que virão na verdade
não serão de água, nem trarão frieza
Serão de fogo em sua integridade,
Capazes de destruir uma fortaleza!
Mas fugir não temos mais oportunidade
Resta-nos proteger-nos dessa força ferrenha.
Conheceis, donzela, por eventualidade
Próximo de aqui alguma lapa que nos convenha?”

“Ainda não creio em ti, é verdade
Cavaleiro, te digo com crueza
Mas por pura celeridade
Há uma caverna nas redondezas
É uma gruta sem profundidade
Mas que deve requerer uma senha
Pois um mago lá vivia em frugalidade
E dos prazeres do mundo se abstinha”

Ao saber de tal realidade
Disse o cavaleiro “Venha!
Venha princesa, sem temeridade
Mostre-me onde fica essa penha!”

III

A donzela guiou o cavaleiro
pelos prados sem demorar
e do mago o antigo cativeiro
facilmente pode alcançar.
“Aí está o viveiro
Onde poderá se esconder
Mas te recomendo, seja ordeiro
ou há de se arrepender!”

“Olhe veja, doce donzela, sem receio!
Para o horizonte te incito a mirar
Veja que sem bom paradeiro
Não conseguiremos nos aguentar!
Veja as nuvens em seu passeio!
Veja, já começam a aquecer
Se não vens, como requeiro,
Não demorarás a perecer!”

A donzela olhou e um susto lhe veio
O céu começava a flamejar
E constatou ser certeiro
O que o cavaleiro lhe estava a contar
Um desespero em sua face veio!
Sua família ia morrer!
E como se não bastasse o fim derradeiro,
A senha não teriam como saber!

“O que fazer!” disse com receio
“Minha família há que salvar
O povo da vila há de saber,
E a senha hemos de encontrar!”

IV

“Donzela, fique, a senha a descobrir
Enquanto eu à sua vila irei
Dizer ao povo para sair
Juro por minha vida que tentarei
Sem demora a todos atrair
E que somente irei retornar
Quando o fogo começar a cair
Ou quando a todos puder avisar”

E ele saltou em seu cavalo a partir
Mas a donzela disse “Buscarei!
Buscarei a senha sem me omitir
Não sei como começarei,
Mas sei que não vou permitir
que as rochas a nos parar
Persistam em nos impedir
De nossa proteção encontrar!”

Ou cavaleiro se distanciou a sorrir
Para a vila de Ka’wei
E chegando, começou por pedir
“Pessoas, a mim vireis
para em sua liberdade seguir
O céu está quase a desmoronar
E todos devem sair
E proteção a si buscar”

Vendo o céu, seu fogo a bramir
O povo, sem pestanejar
Fez o que o estranho estava a pedir
E fugiu para em cavernas e grutas a se ocultar

V

Vários dos homens o estranho seguiram
Levando consigo somente o que tinham às mãos
Nem riqueza nem espadas eles levaram
Nem água, nem vinho nem grãos.
Ao chegarem à gruta, porém, aturdiram
As rochas, a entrada a encerrar.
Cavaleiro e donzela a todos disseram
“A senha, temos que encontrar!”

Amedrontados, todos prosseguiram
Jovens, mulheres, clérigos e anciãos
a buscar na gruta como entrariam.
Os magos, conhecidos por serem ermitãos
Em suas grutas entrar não permitiam
E suas chaves eram difícil de encontrar
Mas os campesinos não parariam
De tentar uma forma de entrar

O fogo se acercou, como todos temiam
Os velhos machucaram suas mãos
Os jovens a esperança perdiam
Mas não encontraram na rocha desvãos.
As nuvens, como demônios, cingiam
Os céus e o horizonte a queimar
E quanto mais fogo bramiam
Mais medo faziam alastrar

Mas o cavaleiro disse “Não Temam!
A senha consegui encontrar!”
Em festejar todos bradaram
“Vamos a proteger-nos sem tardar!”

VI

O cavaleiro, à frente da gruta avançou
Concentrado, com respeito
de joelhos se prostrou
Respirou e buscou força em seu peito
Abriu o pergaminho e a senha entoou:
“Ó pedra com fecho perfeito
Ó pedra que sou, fui e serei
Consinta no que é meu de direito
Abra o caminho que em sua forma tranquei!”

Sem demora a pequena avalanche começou
E para os lados, esquerdo e direito
Um grande estrondo ecoou!
Entendendo bem o que havia feito
O nobre guerreiro então indicou
“Entrem amigos que os protegerei
Serei eu aquele que ficou
E sem temer, aos demônios deterei!”

Todos entraram, E ele começou
A tentar fazer o que ninguém havia feito
Deter a tempestade que um feiticeiro lançou
E proteger inocentes aflitos.
Sua espada levantou e então ele gritou
“Venham demônios, os derrotarei!”
E um urro ele lançou
“Venham que eu não os temerei!”

E então tudo começou
E eu, da caverna escutei
O jovem cavaleiro lutou
e por ele eu orei.

VII

Por horas a fio, sem cessar
O jovem guerreiro lutou
Com sua espada demônios a matar
E em seu escudo o fogo encerrou
E enquanto o céu seguia a crepitar
Em sua batalha seguiu sem desvanecer
Porém o ferro a esquentar
Parecia que lhe ia derreter.

Seu escudo estava a quebrar
Quando uma bola de fogo o acertou
E sua espada, sem fio a ficar
Quando a pilha de demônios aumentou
Seu cavalo morreu e nem pode ele lamentar
Pois caiu com sangue a ferver
E os inimigos que sem cessar
A ele tentaram dissolver

Mas com tenacidade sem se igualar
de um pulo se levantou
e com bravura não quis se dobrar
aos invasores ele surrou.
Por fim, a tempestade a se encerrar,
ele então pode ceder
E ao final, em prantos chorar
Ao companheiro que estava a morrer

“Ó céus, que grande pesar
Meu companheiro estás a receber
Por que ele não pude salvar
E nunca mais poderei ver!”

VIII

Saímos, então de nossa proteção
A donzela, foi a seu cavaleiro a consolar.
Nós, porém, contemplamos a destruição
Que somente uma chuva de fogo poderia causar.
Nada a não ser chamas em nossa visão
Campinas e colheitas todas acabadas
E, mesmo após haver concluído sua missão.
um cavaleiro com face desolada

“Cavaleiro, porque tanta comoção?
Seu cavalo, morreu valente, a seu lado a lutar.
Ele merece um bom enterro e uma oração!”
O jovem se levantou e disse, a concordar:
“Cavalguei com meu cavalo desde minha unção
Por prados e pântanos e cidades inacabadas
Partilhamos origens, destinos e reputação,
Pois pelo rei suas rédeas me foram dadas”

“Agora o enterremos e façamos veneração
Pois ele foi o único a se vitimar.
Cumpriu com a vida sua missão
e agora poderá descansar.”
Nós concluímos do cavalo a obrigação
E depois agradecemos por nossas vidas resgatadas
Ao cavaleiro e a seu grande coração
E a seu cavalo e sua vida entregada

E o cavaleiro se foi em sua peregrinação
E nós, com a lembrança da queimada,
do homem que nos veio em proteção
Quando não tínhamos mais nada.


quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Pretensão



Sir Waters desembarcou do navio rapidamente. Era cedo, mas ele não queria estar um só minuto mais naquele lugar absurdo. ‘Onde já se viu viajar de forma tão horrível!’ Ele olhou ao redor e viu a cidade, uma cidade dessas portuárias, grandes, como muitas outras em que já esteve. Certo era que o cheiro do café e da cana demonstrava claramente que não estava em seu país natal, além do calor e dos insetos, mas isso não mudava muito. Cidade continuava cidade, mar continuava mar e gente continuava gente.

Felipe, ao ver o confuso senhor que descia com expressão sisuda e apressada do grande ‘Alvorada Cinzenta’, apressou-se em aproximar-se. Não que ele fosse dos maiores malandros desse cais, mas sabia identificar uma presa fácil. Ao se acercar porém, tropeçou em uma pedra e caiu próximo à rampa de acesso à embarcação. Sir Waters, pensando que se tratasse de um dos funcionários do hotel vindo recepciona-lo, disse "Jovem, aqui! Jovem!" Felipe, encabulado, se aproximou. "Tome aqui minha bagagem e leve até o hotel filho." E Sir Waters se dirigiu até o café mais próximo. Felipe, então, ficou ali, parado, com todo seu lucro do dia ganho por conta de um tropeço.

Sem nada mais em mente a não ser comer alguma coisa e tomar um café, Sir Waters entrou no café. Pediu um café da manhã simples, com torradas, café com leite, um pedaço de bolo, dois ovos e bacon frito. Pediu também o jornal local. Foi servido e ficou ali, lendo e tomando seu desjejum. Ao concluir, pagou com os últimos bilhetes que tinha na carteira e se dirigiu ao hotel onde deveria te a reserva. Ao chegar, foi recebido por uma senhora que lhe negou entrada pois a reserva em nome de Sir Waters somente começaria a partir dia seguinte. "E minha bagagem?" Perguntou ele, prosseguindo "Um rapaz a trouxe do navio para cá". Sua expressão, porém, foi se transformando quando a dona do estabelecimento foi informando que o hotel não possuia tal serviço. Perdera tudo e não tinha onde ficar até o dia seguinte. Foi então que ouviu o som do sino da igreja, notou a praça em frente ao hotel e as outras pessoas passando. E, com frio no estômago, deixou de sentir-se especial ou estrangeiro e passou a sentir-se apenas mais um no meio da multidão.



sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

O Último Cigarro



Na varanda, acendi o cigarro. Era tarde da noite, talvez já fosse de madrugada. O interior escuro de meu apartamento atrás de mim e uma lua, bonita, quase cheia no céu. Apesar de estar sozinho agora, não conseguia mais fumar em casa. Hábito dos últimos vinte e dois anos, uma esposa, três filhos e dois cachorros, todos com algum tipo de aversão ao cheiro do cigarro. Sorri ao lembrar que cheguei a passar cinco meses sem fumar. Mas tive que voltar. Precisava dessa desculpa, dessa companhia insólita, desse espaço só para mim. O cigarro, ao afastar a todos, me transportava para mim mesmo. Dei uma tragada, olhei para traz e lá estava meu computador, outro companheiro da minha solidão.

Na vida virtual eu tinha um bom emprego em uma boa empresa, diferente da minha vida real onde não me conformava em ter que fazer o que fazia. E o que fazia mesmo? Ah sim, registrar notas fiscais de produtos, garantir que estes seriam colocados na prateleira correta no estoque, melhorar os processos do almoxarifado e catalogar cada um deles no sistema. Até tinha descoberto uma forma de melhorar o sistema. Consegui por em prática esse projeto e, em pouco tempo, me promoveram a coordenador onde eu tinha pessoas que passaram a fazer o que eu fazia antes e eu as olhava fazer, garantindo que fizessem seu trabalho da melhor forma possível. Mas era em uma multinacional! Em algum lugar eu escutei que deveria dedicar-me a trabalhos tais que me tornasse respeitável e útil à humanidade. Não conseguia entender como que ajudar a indiretamente empilhar caixas de produtos e dizer para um sistema que uma camiseta branca é “white” poderia me fazer respeitável ou útil. Era uma hipocrisia muito grande para que eu conseguisse aceitar.

Ainda no mundo virtual, tinha dois filhos lindos. Na prática, já faziam meses que nem Alberto nem Lucas me ligavam e eu, de tanto ligar, cansei. Alberto, o mais velho, já tinha esposa e morava na Lapa, perto do meu trabalho, mas longe do meu caminho, então nunca passei lá. Nunca fui visitá-lo em sua casa. Na última vez que nos falamos, a uns quatro meses, sua esposa ia se formar. Sei que ela se formou por que fiz questão de colocar um “gostei” no álbum de formatura no facebook, mas não escrevi nem parabéns. Quanto a Lucas, esse morava em Campinas e estava numa república na UNICAMP. Estudava o último ou penúltimo semestre de ciências sociais e dizia que queria ser político. Tinha vindo me visitar no começo do ano, e me ligou tem uns dois meses. Perguntou se eu estava bem e pediu dinheiro para sei-lá-o-que da faculdade. Transferi para sua conta, orgulhoso de poder ajudar meu filho, no dia seguinte. Mas a verdade é que o único filho que eu visitava com certa frequência era Miguel. Ele sempre teria os mesmos catorze anos. Estaria sempre deitado, descansando. Não tinha mais fotos em facebook ou instagram, não era mais visto por aí no mundo virtual. No fundo, mesmo não estando mais aqui, ele era o mais real que existia perto de mim. Na morte fria abaixo da lápide não havia a hipocrisia dos sorrisos mundanos. Era o que era e ponto.

Dei mais uma tragada no cigarro, virando-me para a sacada, apoiando-me no parapeito. Lembrei de Rafaela, minha esposa… ex-esposa, e ri. Em nossas fotos, elogiadas, somos civilizados e compartilhamos momentos felizes ao lado de nossos filhos. O último havia sido o natal do ano passado em que acabei indo passar com ela, suas irmãs e sua mãe para poder estar um pouco com meus filhos. As fotos são lindas. Todos perto da árvore, abrindo presentes, abraçando-se e com chapéus de papai noel na cabeça. O álbum ficou tão legal que ninguém se deu em conta que nas fotos tiradas após as onze da noite eu já não estava mais lá. Teve até um amigo meu do serviço que colocou “gostei” em uma dessas fotos sem nem se dar em conta que eu não aparecia nela. Me lembro como se fosse agora. A dona Maria Clara, mãe da Rafaela, dizendo para a Marina, sua outra filha, irmã mais nova da minha es… ex-esposa: “Se esse traste aí não tivesse matado o Miguel, ele estaria aqui conosco. Nem se separado teriam…” Juro que tentei surtar, tentei gritar, espernear, ir de encontro com aquela velha louca e dizer um monte de coisas, mas a verdade é que olhei para Rafaela que tinha os olhos molhados e me segurei. Alberto não escutou, ainda bem! Ele sempre foi o mais esquentado. E Lucas correu para segurar a mão de sua mãe. Eu? Ah! Minha experiência profissional me ajudou nesse momento… “Era apenas mais uma caixa a empilhar, mais um produto a classificar e guardar em alguma prateleira.” Me levantei, fui até Rafaela e lhe disse que o restante de meus presentes estavam marcados com nomes, que ela fizesse o favor de entregar. Saí, entrei em meu monza velho e voltei para casa. Acho que fumei uns três cigarros no caminho da Vila Alpina até o Tatuapé. Nem me dei em conta de chegar em casa e automaticamente ligar a tv e pegar uma latinha na geladeira. Depois da sétima cerveja e da televisão passando um monte de coisas sem sentido, adormeci no sofá e, para não ter um segundo problema desses em menos de uma semana, me coloquei à disposição para trabalhar no plantão da véspera de ano novo.

Mais um trago e o cigarro estava na metade. Bati as cinzas ao vento e olhei o condomínio em que morava. Fiquei imaginando se Miguel teria sofrido ao cair. Ah, eu daria de tudo para estar com ele nesse momento. O teria segurado forte e gritado com ele, teria trazido ele de volta de alguma forma. Depois da reforma no apartamento, não recolocamos as grades. Todos já estavam grandes. Miguel já tinha doze e não era mais uma criança. A verdade é que aquelas grades atrapalhavam a vista e nem Rafaela nem eu as queríamos mais. Já nos sentíamos libertando-nos do fardo de pais. Miguel não havia sido planejado e devo confessar que não queríamos que ele tivesse vindo. Dois já haviam sido suficientes. Porém, assim que o vi quando a enfermeira me chamou no hospital, me apaixonei por ele. “Valeria a pena”, pensei naquele momento. Tentamos dar para ele mais que os outros tiveram. Melhor escola, melhores brinquedos, melhores passeios, melhores condições. Mas não bastou. Sem explicação, sem foto, sem sinais de depressão ou distimia, sem nenhuma tristeza ou solidão aparente, numa tarde de sol, quando sua mãe tinha ido ao mercado, ele chegou da escola, largou a mochila no meio da sala e pulou janela abaixo. O seu Carlos, porteiro aqui do prédio, me ligou dizendo que eu tinha que ir para casa por que “tinha um problema.” Ele não me disse na hora, entendo suas razões, mas saí correndo ainda assim, angustiado, pensando que algo deveria haver passado com Rafaela. Nem avisei ninguém no escritório e também ninguém me ligou. Depois de mais de duas horas, um ônibus, um trem, um metrô, vinte e cinco ligações perdidas no meu celular e uma baita dor de cabeça, desci na estação Tatuapé do metrô e parei para comprar cigarros antes de caminhar até em casa. No bar, estava passando um desses programas sensacionalistas de meio de tarde e a chamada dizia tudo: “Garoto se joga do décimo andar de prédio no Tatuapé em São Paulo.” Paguei o cigarro e saí, escutando o apresentador dizer algo como “...é uma barbaridade esses tempos em que vivemos…” Acendi um cigarro e caminhei tentando imaginar o sofrimento daquela família quando após algumas quadras, me deparo com polícia e repórteres em frente ao meu condomínio. Vários vizinhos conversando e, ao me verem, saíram do caminho abaixando suas cabeças. Estava me encaminhando para a portaria do prédio quando vi o Carlão apontando para mim enquanto se dirigia ao policial. Ele veio em minha direção e eu comecei a tremer. “Senhor Ricardo?”, “Sim”, respondi. “Venha comigo por favor.”

O resto foi um borrão. Fui interrogado, sedado, interrogado novamente e sedado outra vez. Meu filho foi enterrado no cemitério da Quarta Parada no dia seguinte. Não pude estar presente. Não pude consolar minha esposa que havia ido antes, sem mim, voltou antes de mim e, quando retornei ao que antes era nosso lar, já não estava. Ninguém me explicou, ninguém me consolou, ninguém esteve comigo quando fui chorar no quarto do Miguel, ninguém veio me abraçar. A única ligação de consolo que recebi foi do Marcos, meu chefe, dizendo que tomasse o tempo necessário antes de voltar ao trabalho. Dois dias depois, fui até o colégio do Miguel, perguntar se tinham alguma ideia do que tinha acontecido, mas a diretora só me disse que já tinha informado à polícia e à Rafaela tudo que teria a informar.

A angústia voltava a mim, se repetia como naqueles dias. Dei mais uma tragada no cigarro e limpei os olhos na manga da camisa. Já estava acabando, faltava pouco para o filtro. Em algum momento daquela semana absurda, tomei coragem e fui até a casa da dona Maria Clara. Rafaela me recebeu na porta. Perguntei o que teria acontecido e ela disse o que eu não queria ouvir: “Ele te ouviu. Ele ouviu quando você me disse que, se não fosse ele, poderíamos estar viajando e nos divertindo.” Tinha sido uma discussão no dia anterior à morte de Miguel. Eu estava tentando convencê-la a irmos viajar para o exterior. Sair do país. Eu já estava com as segundas férias por vencer. Mas ela dizia que não dava, que tínhamos que pagar as contas, a escola de um, os custos com a universidade do outro, e não me contive. Tudo aquilo que havia ficado guardado veio a tona. Miguel estava em seu quarto estudando e eu tive que dizer. Tinha que tirar aquilo de mim. Depois saí, fui tomar uma cerveja num bar e quando voltei, todos estavam dormindo. Quando Rafaela me disse isso na porta da casa de sua mãe, travei. Saíram lágrimas de meus olhos como nunca antes haviam saído. Me afastei dali e não olhei para trás. Na semana seguinte voltei a trabalhar, em duas semanas chegaram os papeis do divórcio, que assinei sem problemas. A casa seria dividida quando eu me mudasse mas me acomodei e não mudei. Não respondi às mensagens de luto e condolências no facebook, mas fiz questão de deletar uma a uma as fotos de meu filho mais novo. Não que não quisesse sentir sua presença, mas não queria lembrar-me mais do que aconteceu. Desse dia em diante, nunca mais a tristeza me abandonou. Larguei o luto, mas o luto nunca me deixou. Se tornou minha nova esposa e companheira. Somente depois de dois meses é que tive coragem de pegar a mochila do Miguel que ainda estava jogada no meio da sala, mas não a abri. Apenas levei até a lixeira e a joguei fora.

Outro trago no cigarro. Já sentia os dedos quentes. Não queria que ele acabasse, mas isso era inevitável. Inevitável como o tempo, como o dia, como a noite, mas não como a morte de Miguel. Esta poderia ter sido evitada. Repetia para mim mesmo que foram todos injustos e que eu não tinha culpa, mas a verdade era que me sentia culpado e não me sentia vítima da situação mas sim pagando por um mal que havia cometido. Quando me chamaram para a noite de Natal no ano passado, quis crer que queriam voltar a se aproximar de mim, quis acreditar que tudo voltaria a ser como antes. Comprei um belo vestido de flores para minha… para a Rafaela, busquei descobrir de que banda o Lucas gostava e lhe comprei um CD, também soube que o Alberto tinha que trocar de relógio e parcelei um em dez vezes no cartão. Queria que tudo fosse mágico, que tudo fosse especial. Até um presente bacana para a mãe da Rafaela eu comprei. Todos estavam felizes, mas faltava algo, faltava alguém. Na verdade a dona Clara somente externou o sentimento de todos ali presentes. Ela não tem culpa nenhuma. Houve um dia entre o mês da tristeza e a semana das desilusões, em que saí com um pessoal do trabalho para beber, coisa que a muito tempo não fazia. Havia uma mulher, uns vinte anos mais nova, que não parava de me olhar e de se insinuar para mim. Pensei que poderia ser feliz novamente. Cheguei a fantasiar, coisa que desde antes de casar-me não fazia. Lembrei-me de meu casamento. Bonito, é verdade. Era apaixonado por Rafaela e seria até o final. Duas letras “R” sobrepostas, indicando Rafaela e Ricardo substituíram os tradicionais noivinhos sobre o bolo. Esse era nosso símbolo. Ri com o cigarro na mão lembrando-me disso, assim como ri com o copo na mão enquanto a moça me olhava devolvendo o risinho, pensando que era por ela que a expressão de meus lábios se fazia feliz. Não ficamos juntos. Bruscamente me lembrei da mãe de meus filhos triste, inconsolável, chorando. Me levantei, deixei minha parte da conta na mesa e saí andando, transformando o sorriso sincero em um falso que tinha guardado para essas ocasiões, dizendo que tinha um compromisso e tinha que sair. Foi então que me dei em conta. Já não aceitava mais a felicidade em meu peito, nem a liberdade ou a alegria.

Terminei o cigarro e joguei a bituca fora. A observei voar pelo ar até não vê-la mais. Então, subi no parapeito olhando para o horizonte como quem quer ver mais longe, dei um passo adiante com o pé esquerdo e deixei o pé direito escorregar para frente. Não gritei, não chorei, não acenei, nem busquei parar. Senti um desespero profundo enquanto atravessava aqueles primeiro cinco andares mas, depois disso, me senti anestesiado. Então, subitamente, não senti mais nada.



segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Skrepel

Cabana ao longe com árvore ao lado esquerdo, trigais à frente e céu claro.

Skrepel era um bom fazendeiro
que gostava de plantar
caminhava no centeio
sua esposa a lhe acompanhar

Skrepel foi chamado, um dia a guerrear
o que ele gostava não poderia mais fazer
sua esposa que amava, não poderia mais beijar
e seu trigo dourado não iria mais colher

Skrepel viajou, lutou e matou
De tanta morte que ele viu
E aquele fazendeiro, nunca mais voltou
E sua boca nunca mais sorriu

Skrepel um dia ao retornar,
Sua casa reencontrou
Mas em estando lá, ao entrar
Outro homem o saudou

Skrepel não hesitou,
castrou o homem sem perdão
depois, então, o matou
para livrar-se da humilhação

Skrepel viu sua mulher chegar
Já de idade, cabelos prateados
Ela correu a lhe abraçar
Mas parou, atordoada

'Skrepel, o que você fez?
Será que a guerra não acabou?
Com sua louca insensatez,
Seu próprio filho você matou!'