quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

A ti...



Quisera conseguir dizer-te
o quanto tu és para mim
o quanto te admiro e mostrar-te
mesmo que um pouquinho assim.

Impressionar-te? Não somente.
amolecer seu coração,
imprimir em sua alma valente
um pouco mais de emoção.

Mostrar-te que sou teu.
Entregar-me, avivar-me, viver-te,
sacrificar-me a ti como Prometeu.

E no fim, se tu me permitires,
estar a teu lado, olhando-te,
querendo-te, amando-te.

Créditos da Imagem: José Roberto Marques

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Pratique o silêncio

Pratique o silêncio. Internalize seus comentários e conclusões. Não demonstre seu conhecimento ao vento; seja silencioso e valorize seu espaço interior.


Aproveitando, um link sobre o silêncio: Whisper Room Inc.


Créditos da Imagem: Whisper Room

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Tu


Mesmo que estivesse num lugar de alegria
e pudesse sorrir todos os dias, ainda assim feliz não estaria
pois esta alegria não superaria a tristeza do seu não estar.

Mesmo que alcançasse todos os objetivos de vida e espírito,
sem sua presença, de nada valeria
e gozo algum teria.

Ainda que fosse rei, príncipe ou duque,
mago, profeta ou sacerdote,
proprietário, banqueiro ou presidente, completo não seria sem ti.

E se estivesse na miséria, caminhando pelas sombras
pedindo esmolas, comendo e bebendo sobras,
minha dor não seria tão grande quanta a dor de sua ausência.

Faça o que fizer, viva o que viver, seja o que for,
meu universo retorna ao mesmo plano, que é direcionado numa reta
que me leva sempre a um único ponto:

TU

Créditos da imagem: tenderheartmusings

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Sobre um beijo


Um beijo não deve ser dado se for pedido, pois se o for, não há vontade genuína e sim desejo profano. O beijo deve ser ofertado sem desejo, porque onde há oferta pura de coração e com coragem de espírito, há uma vontade contida, pronta para despertar e desbravar os mares dos lábios desejosos.

Se com um beijo o mundo se cala, com uma oferta o mundo brada uma negativa incessante. Se com o calor da proximidade, dos lábios, da carne, do espírito se apresenta o desconhecido, assim despertamos, sem pedir ou comandar, sem permitir ou deixar, da alma do outro e nesse encontro sem pedido, sem eira nem beira, sem deixa ou esgueira, fazemos não dois corpos virarem um, não duas almas se unirem, mas nos fazemos infinitos e eternos.


Créditos da Imagem: Adobe Stock

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Humanos

 




Somos perdidos, somos caídos,
somos a perfídia desonesta,
somos sonhos corroídos
de um mundo sem festa.

Somos atraídos pelo horror,
somos corruptos e corrompidos,
somos tomados pelo torpor
de nossos desejos estúpidos.

Somos destruição e morte,
somos caos e terror
somos aqueles cujo porte
somente causa tremor.

Digno de pena esse infeliz mundo.
Ele é como uma árvore frondosa:
belos frutos mas também um profundo
câncer que por dentro a destroça.

Créditos da Imagem: Pragmatismo Político

sábado, 15 de outubro de 2022

Dicas de escrita

Um post um pouco diferente... 😀

Estava buscando pela internet e encontrei esse blog: "Dicas de Escrita", com dicas bem legais sobre alguns temas interessantes dentro do universo da escrita.


terça-feira, 20 de setembro de 2022

Um sonho


Noutro dia acordei assustado. Pensei ter sonhado que saia de meu corpo. Não da forma romantizada que sempre contam as pessoas em suas experiências espirituais, nem de forma alegórica como em uma aula de filosofia. Também não era nem a barata de Kafka ou a borboleta de Zhuang Zhou, tampouco vi unicórnios, anjos ou luzes no final de algum túnel metafórico. Tentarei descrever o que ocorreu.

Inicialmente me senti absorto com uma sufocante sensação de estar preso, atado por tiras invisíveis de cordões finos e resistentes que apertavam mais a cada tentativa, a cada esforço, a cada vez que eu tentava de alguma forma me mexer. Cada desespero me levava a mais dor. Minhas pernas, minha barriga, meus braços, pescoço, cabeça, todo meu corpo parecia débil e queimava de forma dilacerante. Porém eu não conseguia parar de tentar. Era como a dor viciante de coçar a cabeça com piolhos ou de mexer numa ferida em cicatrização. A dor consumia e agradava ao mesmo tempo, acompanhada de um medo absurdo de que seu parasse de tentar escapar, a própria dor que eu mesmo me provocava viria de forma derradeira e acabaria comigo de uma só vez. “Adiante!”, pensava com uma arrogância demente de quem não tem mais nada a perder nem a ganhar. Somente o sofrimento pelo sofrimento até que, em dado instante que poderia muito bem ser o último, me vi arrancado, puxado de dentro de mim, com a mais terrível sensação de escapar da minha carne. Atravessei as cordas como se eu fosse feito de manteiga, sentindo os cortes em cada músculo, nervo, tendão e ossos.

Fiquei dependurado no ar, de costas, braços e pernas soltas, cabeça pendendo para trás e barriga para cima. Senti então meu sangue, viscoso, fétido, escorrendo por todo meu corpo e me deixando. Não conseguia me mexer, mas aos poucos sentia a dor saindo de mim. Quando a última gota saiu do meu corpo me senti leve. Mexi meus dedos dos pés e depois os pés e imitei o movimento com as mãos. Ergui levemente a cabeça só para sentir agora, ao invés de dor, uma angústia, dentro de mim. Virei no ar de uma só vez somente para ver meu corpo abatido logo abaixo de mim. Ele não parecia vivo. Escorriam sangue dos olhos, nariz, boca e orelhas e o odor era insuportável. Mistura de suor, sangue, urina e fezes. Não havia nada de belo naquele reflexo logo abaixo de mim. Era uma mórbida carcaça sem vida que causava uma sensação forte de repulsa. 

Tentei me levantar e me colocar em posição de caminhar, sem sucesso. Depois, tentei me mover empurrando o  ar de alguma forma e percebi que nem me virar conseguia mais. Cansei de tanto tentar até que comecei a me sentir empurrado para baixo, de volta àquele corpo vazio. Não queria retornar. Não queria voltar para aquele mulambo, para aquele saco podre, para aquilo! Mas não tinha escolha. Voltei sentindo a mesma dor de quando fui arrancado. Só que agora era pior. Não havia esperança de algo novo por que eu já sabia o que me esperava: aquela prisão nefasta daquele corpo feito de morte, que consome a morte, que vive para aguardar e causar o próprio desfalecimento, o próprio apodrecimento.

Acordei de sobressalto e me sentei. Senti um alívio e depois uma tristeza profunda e me levantei. Outro dia se iniciava.

Créditos da imagem: History.uol





quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Loneliness


Sometimes I feel empty. 
I journey into dismay,
discontent and self-pity
entering a void no one may.

I grieve of losses I never had,
I lament for loves that never came
Torment my soul, sad,
With a struggling shame.

All this darkness, this pain,
this undying abyss,
this never ending rain
makes me want to stop all of this.

Sometimes the fight is so intense
that I decay, exhausted,
in darkness so dense
that no one should have followed.

And then I fall asleep
I enter the realm of nothingness
where reality is flipped
and there’s only vagueness

There aren’t whys or hows
in this profound emptiness,
in the void of dreamless drowse
only sweet dull loneliness.


Créditos da imagem: Deutche Welle

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Numa formatura...



“Numa cerimônia de graduação…”
Cerimonialista: “E agora, a paraninfa da turma, Deisiane Silva”
[Aplausos]

A maior emoção da minha vida foi quando eu olhei para aquele quadro gigante formado por um monte folhas de sulfite coladas lado a lado e lá, do lado do número doze eu li “Deisiane Maria Ferreira Silva”. Era eu! Aprovada para a Universidade de Medicina da USP. Tinha que avisar minha mãe urgentemente. Lembro que naquele dia eu tomei o ônibus e fui correndo. Me lembro que enquanto ia na condução sentido São Mateus, em meio à felicidade do momento, me vi lembrando-me do dia em que tudo isso começou.

Minha mãe trabalhava no centro de coleta seletiva na Avenida Sapopemba. Ela ajudava na coleta e seleção de lixo reciclável. Nesse dia, quando cheguei da escola, havia uma mochila novinha na minha cama. Cadernos, livros, etc. Eu nunca tinha tido isso. Tinha os da prefeitura que chegavam no meio do ano, quando chegavam. E nesse ano, já era agosto e nada. Seguia usando os cadernos do ano anterior para escrever. Eu tinha treze anos e estudar não era exatamente a minha prioridade nessa época. Mas a mochila era bonita! Abri e vi cadernos seminovos e livros em bom estado. Nem eram livros do que eu estava estudando, mas eram livros novos e pareciam ser para mim. Minha mãe então veio e me explicou que alguém havia jogado essa mochila no lixo e apareceu lá no centro de reciclagem. Ela falou com a supervisora dela que não viu problemas em trazer para casa. Agradeci minha mãe com um abraço e um beijo. A vida não foi fácil para ela. Sabe, sempre fomos gente honesta, trabalhadora, mas depois que meu pai morreu, minha mãe tinha ficado num estado de depressão profunda. Ela estava grávida, perdeu o filho e a capacidade de ter filhos também. Quando voltou ao trabalho, lhe deram férias e ao voltar das férias a demitiram. Tivemos que largar tudo que já havíamos conquistado e recomeçar a vida na favela… Mas isso eu só sabia pelas histórias. Quando meu pai morreu eu tinha menos de dois anos de vida. Quando minha mãe saiu, eu peguei o material e comecei a olhar, e folhear. De repente, um papel caiu do caderno. Estava dobrado, em três partes, como uma carta a ser colocada em um envelope. E ela me marcou profundamente. Essa carta eu gostaria de compartilhar com vocês hoje:


Mãe e Pai, me desculpem. Desculpem-me por haver nascido e por haver sido um problema para todos vocês por tanto tempo. Mãe, perdoe a insensatez de ter saído de seu útero vivo. Pai, perdoe a falta de senso de haver sido este espermatozoide a ter fecundado o óvulo da mamãe. Eu não queria destruir a vida ou os sonhos de vocês. Não tinha essa intenção. Eu só queria existir e nascer. Achei, por um tempo, que poderia sonhar grande. Ter uma profissão que ajudasse as pessoas. Olhei para meu mundo e um dia, quando você pai me levou ao hospital naquela vez em que eu estava gripado, vi aquele senhor de branco perguntando coisas, me analisando e, como que num passe de mágica, ele disse o que eu tinha e como eu melhoraria. Quis ser como ele. Depois, descobri que ele era médico. Médico! Palavra bonita. Doutor é como todos lhe chamam. Queria ser isso. Mas não poderei. Como foi que me permiti sonhar tanto? Como uma criatura como eu que não deveria nem ter nascido poderia pensar em ajudar outros a viver? Como alguém como eu, de existência questionável poderia ajudar outros a existir? Não! Isso não é nem nunca será para mim. Eu tenho destino certo e já está decidido. Quando vocês lerem essa carta, eu já estarei morto. Vou saltar e voar até morrer de encontro ao chão e voltarei a ser pó. O pó que nunca deveria ter deixado de ser. E vocês, então, voltarão a ser felizes. E poderão passear e viajar. E, assim, eu terei curado a vida de quem mais importa e de quem mais amo: a de vocês. Amo vocês dois!


Beijos,

Miguel.

(1)


Cresci e reli muitas vezes essa carta. Não sei nem procurei saber o que aconteceu com o Miguel. Realmente creio que ele se matou. Provavelmente alguma depressão por conta da briga constante dos pais, ou por qualquer outra razão relacionada a eles. Também não sei quantos anos tinha, mas a julgar pelo material na mochila, ele estava na oitava série do fundamental.

Quando era criança, Miguel passou a ser meu amigo imaginário. Conversava com ele, pedia conselhos, me revoltava, chorava e ria. Mas depois, quando cresci e analisei um pouco melhor as palavras dele, vi que, independente do que tenha acontecido, ele tinha uma vocação. Ele queria ser médico desde jovem e já entendia o que isso significava: curar pessoas. Parece óbvio, mas não é. Ele foi até às últimas consequências para tentar curar seus pais. Não sei se conseguiu. Creio que não. Mas por quem nos importamos, não medimos esforços, por mais idiotas que sejam nossas escolhas e opções, fazemos o que estiver ao nosso alcance para vê-los bem. E quando nos dizem que estudamos e nos formamos para aprender mais técnicas e nos capacitarmos para nosso futuro trabalho, eu concluo dizendo que não. Isso é só uma parte. Mas a parte mais importante, o real motivo pelo qual nos formamos médicos é para ampliarmos mais e mais a quantidade de pessoas por quem faríamos de tudo para vê-las melhor. É para entender essa empatia e passá-la adiante. 




Créditos da imagem: Alpha convites

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Minha alma se entristece


Minha alma se entristece
quando vê a lua cheia no céu,
e nota que este dossel
nem a todos enternece.

Minha alma se entristece
ao sentir do Sol calor
quando vejo com rubor
que nem todos ele aquece.

Minha alma se entristece
com o frio e a solidão,
desespero e aflição
que o ser humano padece.

O indivíduo que amanhece
todo dia para lutar
para viver e sonhar,
e ao final dele adormece.

Quase, quase se esquece
da fome, sede, tristeza
que a vida dá com crueza
para quem se compadece


Créditos da Imagem: Minuto Psicologia

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Mutantes

 



Somos mutantes livres, ou libertos

sempre nos transformando, evoluindo,

anormais sem comando, existindo,

numa loucura linda, descoberta.


Somos aqueles vívidos acólitos

portadores da luz, do caos, da sombra,

levamos nossa cruz como alfombra,

nosso carma da vida sem propósito.


Comemos, bebemos, nutrimos sonhos

inconstantes de débeis ilusões

vãs, que consumimos, em dias bisonhos.


Imaginamos tétricas ficções

onde vemos gnomos feios, risonhos,

correndo sem mistério entre nações.



Crédito da imagem: Cronenberg’s Heady Sci-Fi Film ‘Possessor’




quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Morrer

 


Às vezes me pego flertando com a morte.
O desejo se esvai, a desesperança toma conta
A sombra ganha força e somente a ela aponta e
perco a vontade de ser forte.

Deve ser bom. Morrer! A derradeira ação humana!
O último e devastador sofrimento,
o fim de uma jornada em um momento
Partir dessa existência profana.

Em meu último suspiro estaria em paz,
sabendo que não seria mais um fardo,
que livraria o mundo de outro bastardo,
que ao menos assim de algo certo fui capaz.

Quando viesse o último bater do meu coração,
meu último suspiro minha boca exalasse,
e meu cérebro se desligasse
e meu corpo estivesse inerte, sem ação,

Me entregaria ao vazio do esquecimento,
à solidão eterna e pura
daqueles que morrem em amargura,
no resultado final do desfalecimento.

Créditos da imagem: Revista Bula

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

O Copista - Parte II

 



Link para a parte anterior:


Eram dez horas da noite quando o “Augustus” atracou no porto de Santos. Todos os passageiros desembarcaram como loucos desesperados. Balthazar teve que esperar até que houvesse espaço para sair. A neblina da madrugada já começava a se formar quando ele desembarcou. Ao pisar fora da prancha, em terra firme e ouvir as pessoas ao seu redor falando em todo o tipo de idioma e se sentiu só. Ao mesmo tempo, lembrou de sua conversa a algumas noites. Agora começava a contar seus “mil dias”.

Como se fossem cargas, os imigrantes, como ele, eram direcionados para os trens. Escoltados por policiais e agentes portuários, em fila, a caminho da estação, os homens, mulheres, idosos e crianças iam em iguais condições. Havia um ar de cansaço e uma atmosfera de penitência naquele cais de porto. O cheiro também não ajudava: Um odor de peixe podre, excremento de burros, vômito e urina eram carregados por todo lado pela umidade do ar e pela maresia. Os sons também eram uma confusão de latidos de cães, guinchos de rato, gemidos de enfermos e palavras em muitos idiomas diferentes. Eles se confundiam com o barulho incessante de um maquinário do qual aos poucos a fila se aproximava.

Havia uma tensão no ar que não parou ao adentrar ao trem. Ouviu uma voz gritando. Não entendia o que dizia, mas parecia estar repetindo em vários idiomas. Em dado momento, disse em alemão mal falado: "Esse trem seguirá sem paradas até a estação Hospedaria dos Imigrantes. Tenham todos uma boa viagem".

Seguiu a ladainha em outros idiomas mas Balthazar, fraco e ainda meio entorpecido pela viagem, dormiu encostado em sua cadeira no trem.

Já era noite novamente quando ele acordou. Outra fila. Agora para desembarcar do trem na estação da Hospedaria. Agora, porém, os odores já não eram tão fortes. Ou talvez seu nariz já tivesse se acostumado. Ele ficou para trás e acabou sendo um dos últimos da fila. Espirrou e tossiu uma tosse feia, dessas que a gente sabe que não está bem. Sentia-se muito fraco e simplesmente, mais uma vez, fez o que fez por grande parte da vida: seguiu.

Balthazar foi hospedado em um quarto grande com beliches onde a única diferença do navio que que estava antes era que aqui não balançava muito, a não ser quando o trem passava, parecendo que ia fazer com que tudo desmoronasse. Lá ele passou suas seis noites seguintes. Ele ficou pior, mas depois veio a descobrir que era só uma gripe forte. Foi lá que ele conheceu Joachim, um alemão que havia fugido da guerra e que agora ajudava os imigrantes. Era amável e bondoso, trabalhando como enfermeiro. Balthazar poderia jurar que teve várias conversas agradáveis com ele. Mas não viria a se lembrar de nenhuma dessas conversas no futuro.

Na sexta noite, Joachim acordou o então recuperado Balthazar de seu leito com dois tapas. Assustado, ele se levantou e, na penumbra, com uma vela na mão e olhos que Balthazar poderia jurar que estavam sangrando, ele mandou que ele se vestisse. Sem protestar, ele o fez e seguiu sem palavras pelos corredores, entre camas e roncos, até a saída do alojamento. Lá chegando, notou que as costas de Joachim estavam rasgadas. Roupa e pele. Como se fossem marcas de garras. Balthazar quis perguntar mas seu interlocutor o olhou, seus olhos eram de um vermelho-sangue pulsante. Um breve momento passou e ele disse simplesmente: "Siga-me".

Eles saíram da estalagem e andaram pela penumbra da noite até um carro que estava parado a duas quadras dali. Balthazar entrou seguindo seu guia e foram conduzindo o carro pelas escuras e sombrias ruas da cidade. Em dado momento, com uma voz monótona, Joachim disse: “Nosso mestre te está designando para o bairro do Pari. Lá você encontrará trabalho no cartório próximo ao endereço em que vou te deixar. Você ficará numa pensão à rua Carnot, no quarto de número 21. Aqui estão documentos para que você possa se identificar e sua primeira tarefa”. - Ele lhe entregou um envelope. - “Passarei em seis dias para coletá-la”.

Antes que Balthazar absorvesse tudo, estava parado à porta da dita pensão com o envelope na mão e vendo o carro partir.

Na pensão, ele foi recebido por uma senhora portuguesa que se apresentou como dona Alépia. Ela o fez entrar e mostrou seu quarto. Ouviu então o barulho da chuva o que fez com que a senhora subisse rápido pelo quintal da pensão, deixando Balhtazar apenas com um candeeiro aceso na mão à porta do quarto. Aquele pequeno quarto fedido no porão tinha paredes amareladas e sujas. O encanamento dos esgotos passava descoberto pelo teto, deixando à mostra o escurecimento daqueles tubos velhos. Os sons da água escorrendo por dentro dos canos se confundiam com os sons vindos da chuva do lado de fora numa sinfonia aterradora. O corredor externo tinha um chão vermelho e uma lâmpada pendurada no teto que balançava com o vento. Já dentro do quarto vinte e um, havia um cheiro de parede mofada e de madeira velha, de frango assado velho, de suor e odores humanos velhos, de tinta nanquim nova e de sangue fresco. A mobília do extremamente apertado e claustrofóbico quarto era composta por uma cama antiga com um colchão fino e uma mesinha pequena com um banquinho.

“Copiar este texto em pele de carneiro curada, com uma pena de ganso. As partes em negro devem ser copiadas em nanquim e as partes em vermelho usando sangue comum. Todo o texto deve ser copiado durante a noite, após o último raio de sol e antes do primeiro, à luz de velas ou de candeeiro. Segue algum dinheiro para compra dos materiais necessários.”

Também havia cinco contos de réis. Balthazar retornou tudo ao envelope, colocando-o sob o candeeiro e o apagou. Soltou uma risada rouca, enfadonha, nervosa. Depois, recostou-se na cama tentando de alguma forma lembrar-se de sua família. Antes de cair no sono, chorou.


Crédito da imagem: São Paulo in Foco