segunda-feira, 28 de março de 2016

O Cobrador - Parte III


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Parte I
Parte II

Dois homens bem vestidos entravam pelo saguão de um importante edifício na pequena rua Três de Dezembro no centro de São Paulo naquela manhã de segunda-feira. O mais velho, de olhos puxados trajava um terno cinza, gravata vinho e camisa branca, além de uma barba branca, bem feita. O outro, um pouco mais jovem, com a tez moreno-escura, trajava um terno cor de creme, e uma camisa também creme, um pouco mais escura. Enquanto o primeiro homem levava consigo uma valise, o segundo não trazia nada às mãos além de um jornal “O Estado de São Paulo”, do dia, em cuja manchete principal era o aumento do número de mortos na capital nesse ano em comparação com o mesmo período no ano anterior. Nada parecia fora do comum. Ambos entraram no elevador e apertaram o botão para o quinto andar.

- Francamente, o Santos já não é o mesmo a muito tempo - Disse o senhor mais velho ao outro, fazendo uma referência à segunda notícia principal de capa que mostrava a derrota do time para a Ferroviária.

- É verdade seu Áureo. Meu pai já nem acompanha mais futebol por causa disso.

- Beto, mas se a gente não for acompanhar futebol, o que vamos acompanhar? Os obituários?

Ambos riram enquanto saíam do elevador para o corredor em penumbra. Se dirigiram até uma sala onde dizia “Tanaka e Jamba Advogados”. A porta estava trancada.

- Diacho! - Praguejou Beto - A Luzia não chegou ainda??

- Quando ela chegar, mande-a embora e contrate outra recepcionista. Cansei dela.

- Essa porta ainda está emperrando - O jovem empurrou com força após destrancá-la e, enfim, conseguiu abrir o escritório.

Entraram.

Áureo se prontificou em ligar a chave geral e acender as luzes, enquanto Beto entrou para a pequena copa para abrir as cortinas e deixar o ar entrar. Ao passar pela porta, porém, foi surpreendido por uma mão vinda de trás tapando sua boca, enquanto outra lhe pressionava algo pontiagudo em suas costas. Uma boca se aproximou de sua orelha esquerda.

- Não se mova, não grite, não fale. Meu negócio aqui não é com você, mas com seu sócio. Se ficar calado e cooperar, não sairá machucado e tudo acabará rápido. - Disse a voz e começou a afrouxara boca do jovem rapaz. Quando pode falar, ele perguntou, tremendo de medo, em voz embargada.

- O que devo fazer?

- Nada Doutor Roberto. - E o empurrou para uma cadeira. - Apenas ficará aqui, sem incomodar.

Com grande habilidade, o intruso pegou uma corda forte e amarrou o advogado ao assento e em seguida tapou sua boca. Foi então que Beto viu que, desmaiada no chão da copa estava Luzia, a recepcionista, inconsciente. Foi então que se ouviu da outra sala:

- Beto, você sabe onde está a pasta do caso da Senhora Dorneles? Não tô encontrando aqui no computador. - O intruso deu alguns passos para fora da cozinha.

- Olá Senhor Áureo, como tem passado?

- Quem é você? Onde está o Beto? Vou chamar a polícia.

- Se você chamar a polícia, terá que explicar o sangue que haverá na sua cozinha. - Sr. Áureo abaixou o celular.

- O que você quer?

- Você pediu um empréstimo à DANTE a um ano. Eu vim receber o pagamento. São duzentos mil reais. Pague agora. - O cobrador foi se aproximando da mesa do advogado. Cleber estava mais velho. um ar mais altivo, imponente. Mas o que mais assustava era seu olhar. Havia algo de impiedoso, de intrépido e de amedrontador naqueles olhos castanhos que faziam você não querer olhar diretamente para eles. Era como a profundeza do mar ou a escuridão da lua nova.

- Mas eu não tenho o dinheiro, já disse a seu representante. Por favor, me dê um novo prazo… Eu juro que vou pagar. - Cleber já estava bem próximo à mesa. A faca à mostra somente fazia com que o Doutor Áureo estremecesse mais.

- Seu prazo venceu ontem. Eu vim cobrar o pagamento e os juros. - O rapaz pegou o celular e jogou na lixeira próxima à mesa. - Mas se não tiver o dinheiro, ainda assim receberei ambos.

- Mas eu não tenho. - Desatou a choramingar. Sua seriedade foi abaixo. - O empréstimo tinha sido para subornar o juiz no caso da Deputada Jakeline mas o advogado dela pagou mais. Resultado, fiquei sem o dinheiro e ainda perdi a causa. Por favor, me dê mais tempo. Estou entrando num caso em que o Pastor Herivaldo me garantiu que ganharemos e será uma boa grana.

- Sr. Áureo, o senhor não tem mais dinheiro nem para o Lobby. E eu não vou voltar assim, de mãos abanando.

- Mas eu tenho família. Por favor, não faça isso comigo. Eu preciso tentar. Me dê uma semana...

- Vamos fazer o seguinte doutor. Me simpatizei por você. Além disso, meus associados estão a par do processo do Pastor Herivaldo contra o Bispo Manjuvo. É um caso de plágio, não é? - O advogado balançou ferozmente a cabeça afirmativamente. - Assim sendo, vou cobrar apenas os juros hoje. E te dou um prazo de até um dia após a publicação do resultado no D.O. O que me diz?

- Mas eu não tenho dinheiro para pagar nem os juros. Por favor…

- Mas bom senhor, quem disse que os juros serão pagos em dinheiro? Ponha suas mãos sobre a mesa, com as palmas para baixo, sim?

O homem sabia o que viria. Pensou um pouco, mas não viu nenhuma solução. Seus olhos começaram a chorar sozinhos, sem controle. Ele colocou lentamente ambas as mãos na mesa. - Faça o que deve ser feito. - Disse e ficou olhando para o cobrador.

Cleber pegou o facão e fez um pequeno corte na primeira falange do dedo anelar de cada mão do Sr. Áureo. Em seguida, olhou para o Sr. que chovara desconsolado.

- Dr. Áureo Tanaka, de qual dos seus dedos anelares o senhor gosta mais? - O advogado não respondeu. - Pois bem. Eu levo o da direita então. - E cravou a ponta do facão da metade esquerda da junção entre a primeira falange do dedo direito e o restante do dedo. Em seguida, puxou para o lado e apertou com força. Um corte firme, preciso. Mas o advogado não gritou, não tentou impedir, nem buscou mover-se. Ficou ali, parado, sentado, chorando pateticamente, enquanto Cleber pegava a primeira falange do dedo anelar da mão direita e colocava dentro de seu lenço de bolso.

- Pronto. Desculpe-me. Os juros estão pagos e temos um novo acordo que, creio, será de agrado de meu chefe. - Guardou o lenço com o dedo no bolso. - Ah, já ia esquecendo. Talvez você não veja sua filha de hoje até o dia do julgamento do Bisbo Manjuvo. Talvez, como incentivo, ela venha a frequentar as cerimônias do Pastor Herivaldo… Enfim, é melhor que cumpra nosso acordo, ok?

Ainda chorando, Sr. Tanaka respondeu afirmativamente.

Cleber desceu pelas escadas como normalmente fazia quando tinha um trabalho. Saiu do prédio e virou à esquerda, se dirigindo à Rua Quinze de Novembro. Os camelôs começavam a colocar suas lonas no chão para espalhar os produtos para venda enquanto os engravatados se dirigiam ao prédio da BOVESPA. Somente mais um dia normal. Pegou seu celular informou o status da missão a seu superior, Jânio, substituto de André depois que ele morrera de câncer de estômago e seguiu seu caminho para sua segunda missão, bem mais longe do centro que a primeira.

Tomou o metrô na praça da Sé e depois de uma viagem tranquila até a estação Corinthians-Itaquera, onde fez a baldeação para o trem da linha 12, descendo na estação São Miguel. Caminhou até a Avenida Marechal Tito e, em seguida, até a Avenida Nordestina. Rua feia e estreita, com paredes pichadas e sujas. Caminhou com seu terno chamativo para a região nesse horário até a sede da Igreja do “Movimento Evangélico da Real Dinastia do Advento”. Uma dessas novas igrejas feita por pastores que gozavam de isenção de impostos para poder receber dinheiro dos fiéis em troca de um lugar ao lado de Deus no dia do advento.

Ao lado do templo estava uma casa bonita, um sobrado com balcão. Era aí que Cleber teria sua próxima missão. Tocou a campainha e esperou. A janelinha da porta abriu e uma senhora, cabelos grisalhos e ar cansado respondeu.

- Pois não?

- Minha senhora, o Bispo Eduardo Manjuvo está?

- Um minuto.

A senhora entrou e, enquanto esperava, com uso de uma micha, ele forçou, com precisão, a tranca da porta, destrancando-a, mas deixando-a fechada. Se afastou e guardou a ferramenta quando ouviu os passos. Ficou bem próximo à porta. Ainda pela janelinha, O Bispo Eduardo apareceu.

- Bom dia meu irmão, em que posso lhe ser útil?

- Olá Bispo, corte a ladaínha. Meus associados me enviaram para cobrar sua dívida e os juros.

- Eu não sei do que você está falando, e…

Cleber não esperou a explicação. Meteu um pontapé na porta destrancada e ela surpreendeu o bispo de tal forma que ele caiu para trás soltando o pequeno revólver de calibre 22 que tinha na mão. Ele se projetou para dentro da casa, chutando a arma para um cômodo no lado direito. Enquanto o bispo tentava se recompor, ainda no chão, Cleber empurrou a porta para trás com habilidade, fechando-a, e pisou com força no joelho do bispo caído. Um urro estridente de dor saiu da boca do homem, enquanto a senhora de cabelos prateados se projetava pelo corredor gritando. Em apenas três passos largos, o cobrador a alcançou e deu um murro bem forte no nariz da velha. Ele teve a delicadeza de segurá-la nos braços antes que ela caísse, para que não se machucasse no chão. Se virou para o bispo e voltou caminhando lentamente enquanto ele gritava pela dor no joelho.

- Eu odeio o seu tipo, senhor Manjuvo, mas estou aqui apenas para fazer meu trabalho. - O bispo começou a se sentar, mas Cleber empurrou-o para baixo novamente com o pé em seu peito, mantendo-o nessa posição. - Onde está o dinheiro?

- Eu não o tenho. Por favor, tenha piedade! Eu sou um homem de bem. Nem minha mãe nem eu merecemos isso…

- Você sabia no que estava se metendo quando pediu o empréstimo para apoiar o orfanato. Seus fiéis podem ter acreditado nas suas pregações imbecis a respeito de multiplicação do dinheiro, mas nós sabemos a verdade. Sua igreja cresceu no bairro a custo alto, mas agora é hora de pagar. Onde está o dinheiro?

- Eu não tenho! Eu não tenho! Por favor, não me mate! Tenha piedade! Por favor. - Ofendido com a comparação feita de sua função com a de um assassino, Cleber levantou o pé do peito do bispo e bateu com o salto do calcanhar do sapato com força no queixo do homem desesperado. Ele ficou atordoado e gemendo, e brotou sangue de sua boca. Sentiu seus dentes enfraquecerem e uma tontura repentina. Não pôde gritar.

- Eu não sou assassino seu verme. - Cuspiu. - Escória! Vou perguntar só mais uma vez. Onde está o DINHEIRO!

Assustado e aturdido, o jovem bispo verteu lágrimas que se misturaram ao sangue. Olhou para a mesa, onde estava o livro sagrado. Cleber estendeu a mão e pegou a Bíblia. Abriu o zíper e caíram dólares de dentro. Eram umas vinte notas de cem. O religioso se sentou no chão novamente e olhou com ar de desespero.

- Não entendi, senhor. O senhor está tentando me subornar? Com dois mil dólares, é isso? Eu não posso acreditar. O senhor é uma lombriga rastejante e acha que eu sou da mesma laia? Onde está o dinheiro do empréstimo seu filho de uma puta? - Somente agora Cleber tirou sua faca. - Se o senhor não tem o dinheiro da dívida - e jogou os dólares sobre o pastor - vou te impor uma nova condição de pagamento. A audiência do processo do Pastor Herivaldo contra o senhor é amanhã, não é? - O homem, ainda desesperado, balançou a cabeça afirmativamente. - O senhor irá propor um acordo no qual o senhor reconhecerá o plágio no nome da sua igreja e que o copiou diretamente do Movimento Evangélico da Redenção por Deus no Alto. Assinará o acordo propondo um parcelamento no pagamento da indenização de não mais que dez parcelas e solicitará um prazo para mudança do nome da sua igreja de não mais de trinta dias. Estou sendo claro? - Vociferou.

- S-sim, sim! - respondeu o humilhado bispo.

- Está bem. Assim sendo, vou cobrar somente os juros hoje. - Com força, o cobrador pegou o bispo pelo pescoço e jogou de cara para o chão. Apoiou o joelho na base da coluna, abaixando-se e levantou a camisa do desesperado homem no chão. Com seu facão afiado, cortou uma lasca de uns cinco centímetros de comprido da pele das costas dele. Eduardo Manjuvo começou a gritar de dor, mas o grito deu lugar a um choro de sofrimento e de angústia. Cleber guardou em outro lenço no bolso da camisa a lasca de pele, se levantou e saiu pela porta, dessa vez, sem pedir desculpas.

No dia seguinte, tudo ocorreu como esperado. O Bispo Eduardo Manjuvo admitiu publicamente ao Pastor Herivaldo o plágio no nome e ficou de pagar uma indenização em um prazo de dez meses. Um terço desse valor iria para a Tanaka e Jamba Associados, que defendia o Pastor Herivaldo na causa e, com isso e um parcelamento da dívida, o advogado conseguiu saldar sua dívida com a DANTE sem maiores dificuldades.

Cumprindo com seu dever cívico de trabalhador honesto e pagador de impostos, dez meses depois, Cleber abriu uma denúncia de porte de arma ilegal contra o bispo Eduardo Manjuvo. E se aproveitando dos contatos que a DANTE adquirira anos antes na Secretaria de Segurança Pública, pediu sigilo maior e agilidade ao caso. Em menos de um mês o Bispo Eduardo Manjuvo foi preso e condenado a trinta meses de prisão e uma multa de doze mil e quatrocentos reais. O dinheiro da multa seria revertido a ajudar o orfanato do bairro de São Miguel Paulista mas, dessa vez, sem propaganda religiosa. Cleber, o cobrador sentiu nessa missão que havia feito mais que seu trabalho. Havia feito um dever para com a sociedade em que vive e havia feito o bem. Anos mais tarde, quando suas filhas já estavam formadas e cada uma exercendo sua função para a sociedade, ele ainda se lembraria dessa missão com carinho pois ela o fez guardar um sentimento de justiça e de que, qualquer que seja sua função na sociedade, é possível usar os meios que tenha para fazer de nossa cidade um lugar mais justo.



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Parte IV

quinta-feira, 24 de março de 2016

Jorge Carola




O pulso, pungente, o mar sereno
do bar entrante na selva incessante
ao rio estridente a cotovia falante
carola à luz faceira de lua brilhante
com São Jorge habitante em que, pasmem,
moribundo Dragão da chama acesa, processo
invertido do juiz catedrático com gárgula à porta,
pregava à carola, faceira com véu da noite,
erguida à Lua acesa com luz em breu,
na asa do anjo ou da cotovia?

Ou talvez do pardal, professor enérgico
da força pura do campo magnético,
bulido em burburinhos, murmurinhos
e borbulhos cálidos de mar violento,
penetrantes como os olhos da noiva,
com véu aberto, sonhando com noites
pungentes enquanto, bêbado, Jorge
sonha com Carola, cartomante, quiromante e
pálida à luz do luar da nova selva de pedra
tolhida à guerra vencida a força da Espada
de Ogum que, com Iemanjá e Oxum faziam
festa bêbados ao terreiro do celeste inverno
branco ao som dos rugidos de dourado Dragão
da cansada e pálida cotovia-pardal voadora
do céu de Gales do Sul, ou do Oeste do Rio Amazonas
ou de Kioto, onde tudo, tudo pode acontecer!

Ao pulso medido na selva ao nível do mar
por Jorge, médico do hospital Cotovia, esposo
de Carola casados na noite, cansados no dia,
desquitados a fogo-fátuo com a benção do
anjo-dragão, a céu aberto por um juiz desmiolado
amante de Gárgulas e de faceiras carolas embreagadas.

Justas as Carolas que amam juízes e separam-se de
maridos injustos e embreagados à porta do gárgula-tribunal,
incisivo e voraz, com fogo ardente, pungente a pulso ferido e mortal.
Esquecem-se de Jorges furados e penetrados por
espadas-lanças de Oguns-Dragões,
habitantes de luares-selva de pedra-relva,
onde mora o angelical pardal-cotovia, de asas marrons-esbranquiçadas
e carregam, na lenda e no sonho, as almas de Jorge-Carola ao mar brilhante.


terça-feira, 22 de março de 2016

O Cobrador - Parte II


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Parte I

Cleber, ou melhor, O Cobrador, como era conhecido agora, estava ansioso. Não que este trabalho no Morumbi fosse mais difícil ou mais fácil que os outros que tomara desde que se filiou à DANTE, nem que o dia estivesse particularmente complicado ou que houvesse algum problema pessoal no momento, mas essa seria a primeira vez que teria que matar por conta de uma cobrança.

Desde sua filiação à “empresa”, Cleber havia feito vários trabalhos diferenciados. A maioria deles, na verdade, envolvia ameaçar algum credor para que ele pagasse corretamente suas dívidas, ou lembrar um ou outro que seu prazo estava prestes a expirar. Em alguns poucos casos, envolviam algumas mutilações pequenas como um dedo da mão ou do pé. O caso mais célere foi um em que fora solicitado a cortar com uma tesoura o tendão do calcanhar esquerdo de um homem. Nesse trabalho se sentiu mal. O homem gemeu tanto que desmaiou de medo. Despertou durante a dor mas essa foi tamanha que voltou a desmaiar.

Mas Cleber estava bem. Sua família e ele haviam mudado para o Jardim Anália Franco, para um apartamento luxuoso próximo ao Shopping. Suas filhas haviam sido transferidas para uma boa escola particular na região e ele, claro, estava feliz. Mas o que o trazia mais alegria não era a esposa ou o bem estar das filhas; Não era o cachorro, filhotinho de pug, que haviam comprado, nem a televisão de quarenta e duas polegadas comprada à vista no dinheiro; nem mesmo as cervejas importadas que recebia em casa agora que fazia parte de um clube especializado ou o carro do ano que comprara a uma semana. Era o trabalho. O antigo atendente de telemarketing finalmente havia descoberto para o que nascera. Claro que não disse a sua esposa de que se tratava. Em vez disso, disse que fora contratado para trabalhar na área administrativa no setor de cobrança de uma grande empresa: A DANTE. E o que fazia a DANTE exatamente? Bem, Cleber não entendia ao certo. Para o mundo, a DANTE era como um grande banco de investimento privado. Porém, seus sócios tinham negócios com toda a sorte de pessoas. Desde empresários a empresas beneficentes; De escolas e hospitais a empresas na área de construção civil e no mercado imobiliário. Seus chefes diziam que o objetivo da empresa é “fazer o mercado girar”. Só que o prazer de Cleber, não era em ganhar dinheiro como seus chefes, nem em alguma pretensão social. Era bem mais básico. Ele sentia gosto na tortura, na ameaça, em sentir-se poderoso em meio aos poderosos. Ele sentia o prazer no sangue, na ameaça, no olhar de medo do inimigo, em conseguir “superar-se”. E nos últimos seis meses havia se superado em muito…

Nessa sexta-feira de sol, porém, algo novo surgia para Cleber. Ele teria que assassinar uma pessoa. O trabalho seria, obviamente, mais rentável, apesar de não envolver a coleta de nenhum valor em espécie. De fato, no começo, ele nem havia entendido muito como um trabalho como esse poderia envolver um setor chamado de “cobrança” mas, muito superficialmente, o homem que se dizia chamar André o explicou: “Cobrança não se trata só de pedir o pagamento de algo, mas de garantir que outros o façam. Nesse caso, uma pessoa dentro da secretaria de segurança pública do Estado de São Paulo esteve envolvido em um empréstimo que tinha como origem o dinheiro de uma parte da força da polícia militar que trabalha nas rondas escolares. Ele não pagou. Você vai lá e mata um dos assistentes dele e depois liga, cobrando. Ele deverá pagar.” Cleber não entendeu tão bem a lógica da coisa. Mas é verdade que conseguia compreender que, se tratando de uma pessoa de relativa importância no cenário político, uma mutilação poderia alarmar muito a mídia.

Como sempre fazia quando tinha algum trabalho, foi de transporte público. Tomou o ônibus na Av. Vereador José Diniz e depois o Metrô, onde descera na estação Faria Lima. Tomou outro ônibus e desceu próximo ao Palácio. Trazia consigo somente sua faca (que substituíra o canivete usado nas primeiras missões) e um par de fotos da vítima, além de sua carteira, celular e óculos escuros. Trajava um terno simples, preto, camisa branca e gravata preta. Não tinha nem o nome da pessoa. Segundo André, o alvo estaria chegando ao local por volta das dez da manhã. Um observador em algum lugar que não havia sido dito a Cleber o avisaria por uma mensagem no celular quando o alvo estivesse se aproximando do local.

Eram nove horas quando Cleber chegou à altura da Avenida Morumbi onde haviam combinado. Esse ponto fora escolhido por não haver câmeras de segurança ou policiamento constante. Ficou ali, no ponto de ônibus, esperando o chamado e observando o trânsito e os casarões. Estava muito complicado o dia para quem estava de carro. Ele não tinha ideia de como faria para assassinar o alvo com uma faca. Esses carros costumam ser blindados e ele devia ter motorista. Talvez, o plano de hoje fosse simplesmente observar e projetar um plano melhor. Talvez ele devesse treinar com armas de fogo ou algo do tipo.

Foi então que, depois de apenas trinta minutos desde o momento em que havia chegado ao ponto de ônibus, que ele recebeu a mensagem: “Nos adiantamos um pouco. Apresse-se. Darei três piscadas com o farol dianteiro.” e passou a placa do carro. Pela mensagem foi que ele entendeu. O informante era o próprio motorista do automóvel oficial! Foi nesse momento que ele sentiu toda uma ansiedade diferente. A missão não era tão complicada assim. Ainda assim, pensou, como faria?

Nesse momento, enquanto ele refletia sobre como executaria seu alvo, viu o carro preto com a placa oficial se aproximando. Parou do lado do ponto de ônibus e esperou. O carro parou onde estava e ele entrou no banco de trás, empurrando para o lado o homem que ali estava.

- Ei! Ei!, o que é isso? Rodolfo, por que esse homem está entrando no carro? Quem é você?

Mas o carro partiu. O motorista trancou as portas pela trava de segurança e Cleber tirou a faca da parte de trás da calça.

- O que é isso? Quem é você?

- Sou o Cobrador. Trabalho para a DANTE.

- Mas eu não devo nada,...

- Me desculpe, é somente meu trabalho.

Cleber impulsionou o corpo para a frente empurrando os braços do homem sobre o banco com o peso de seu corpo. Pegou a faca e apontou para seu alvo que gritava no carro tentando abrir a porta travada. Os sons ecoavam enquanto a ponta metálica se aproximava. Quando o cobrador chegou bem perto do corpo, soltou um pouco as mãos liberando a pressão e fez uma grande força até penetrar com a ponta do facão no peito, dois dedos abaixo do mamilo esquerdo, onde estaria o coração. Lentamente forçou o corpo mais e mais. Com a mão livre, pressionou a boca de seu alvo, avançando com a cabeça, até parar com a cabeça ao lado da do homem, sua boca ao lado da orelha, e sussurrou: “Desculpe-me”. Em seguida forçou a faca até que ela entrasse fundo no peito do rapaz agonizante. Puxou a faca lentamente, um prazer contido, o som da faca era como uma nota de violino, como um sussurro, como uma pintura. Continuou segurando a boca do homem e pressionando-o contra seu corpo enquanto ele estremecia com a dor e com o desespero. Seus olhos foram lentamente se tranquilizando até que, por fim, parou de respirar. O cobrador, então, se arrastou um pouco pelo banco, colocando o corpo moribundo para o outro lado. No momento em que o carro parou no farol, Cleber abriu a porta e deixou o veículo. “O motorista deve ter um plano dele.”, pensou. Seguiu seu caminho como se nada tivesse acontecido, descendo a primeira rua que viu. Caminhou até encontrar um ponto de ônibus e tomou o primeiro que passou, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Estava cheio, mas não lotado. Por sorte o ônibus ia para o Terminal Santo Amaro, de onde poderia tomar o metrô na linha cinco e seguir viagem.

Chegou tranquilamente em casa por volta das quatro da tarde. Tomou seu banho e trocou o terno e os sapatos por um bermudão e chinelos. Sua esposa não estava. Devia estar no Shopping. Suas filhas estavam na escola. Pegou uma cerveja e se sentou, zapeando os canais na televisão. Depois de algum tempo, passou por um que lhe chamou a atenção. Era um plantão de notícias desses de emergência. Estava dando a informação que o filho do secretário adjunto da secretaria de segurança pública do estado de São Paulo havia sido morto. Uma única facada no peito. O carro estava dentro do Palácio dos Bandeirantes e o motorista não havia sido encontrado. As mãos de Cleber começaram a transpirar imediatamente. Seu coração foi a mil, sua testa começou a suar. Não, ele não sentia medo nem um tipo de desespero. Era uma satisfação. Uma felicidade pela notoriedade e reconhecimento de um trabalho bem feito. Sentia-se como se estivesse ganhando o prêmio Nobel ou o Oscar. Fez seu serviço sem manchas ou marcas, sem pistas. Algo notável. Recostou as costas na poltrona e deu um bom gole na cabeça, quase lacrimejando com a satisfação do que havia feito. Pouco tempo depois, pegou seu notebook e entrou no facebook. Ficou passando de mensagem em mensagem enquanto pessoas falavam da barbárie e do caos que se instaurara no Palácio do Governador. Outros, porém, questionavam se o assassino não havia feito justiça, uma vez que o secretário adjunto havia empregado seu próprio filho em algum cargo oficial. Mas Cleber não se importava com essas questões políticas. Ele somente se interessava no tanto que a notícia tomava forma. Ela aumentava de jornal em jornal, passando desde os que somente relatavam a notícia até os que supostamente ressaltavam detalhes sórdidos. Alguns eram reais, é certo, outros somente questionavam e faziam conjecturas sobre como algo assim poderia haver ocorrido.

Mas os mais sensacionalistas diziam que haviam sido cerca de dez facadas no peito. Desses Cleber não gostou. O que ele mais havia gostado em seu trabalho era a limpeza com que havia sido feito. Claro, teve que confiar na operação a qual nem sequer havia sido comunicado, mas foi satisfatório. Foi excelente. Foi estranhamente simples e ao mesmo tempo prazeroso. Foi como ouvir uma música singela e triste que, em dado momento, vem uma explosão. Ele não queria saber de política, de como isso afetaria o rumo do partido ao qual o secretário pertencia, ou quais seriam os efeitos disso na próxima eleição. Era apenas um trabalho.

Pegou o celular que a DANTE havia dado e ligou para o número que o André havia passado. Tocou uma, duas, três vezes. Na quarta atendeu uma voz de mulher.

- Alô.

- Alô. Esse celular pertence a um credor. Pague sua dívida.

SILÊNCIO…

- Você, seu assassino… - A mulher gritava do outro lado, chorando.

- Desculpe-me. Sou apenas um cobrador. Pague sua dívida. - E Desligou.

Refletiu um pouco sobre a palavra… “Assassino... Não. Eu somente sou um cobrador.” Jogou no lixo a garrafa de IPA e pegou outra. Serviu em seu caneco decorado e bebeu com gosto, enquanto mudava a televisão para o canal de desenhos.

No dia seguinte, pela manhã, iria até a DANTE no centro pegar seu dinheiro, em espécie. Também tinha agendado uma reunião com o contador que lhe auxiliaria a como investir seus valores sem se preocupar com o fisco. Talvez tivesse uma nova missão. E a faria com excelência pois, como veio a descobrir nos meses anteriores, era para isso que ele havia nascido.



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Parte III

Parte IV

terça-feira, 15 de março de 2016

O Cobrador - Parte I



Era um fim de tarde frio, nublado e úmido. Daqueles típicos paulistanos. A Rua Vinte e Quatro de Maio estava repleta. Já eram quase cinco e trinta da tarde e as pessoas estavam saindo apressadamente de seus serviços, dirigindo-se, em sua maioria, à Praça da República ou ao Vale do Anhangabaú. Mas não Jorge. Ele ia em outra direção.

Antes, na hora do almoço, o jovem operador de telemarketing mulato de vinte e cinco anos, duas filhas, uma esposa e um apê financiado em São Miguel Paulista havia encontrado com André, um companheiro da universidade. Fazia sol, mas já prenunciava o frio. O restaurante, um desses gordurentos padrão do centro em que Jorge havia almoçado não fora o lugar. Também não foi nas ruas sujas onde ele passeia depois do almoço. Foi, na verdade, um encontro despropositado.

Jorge, descendo pelo outro lado da praça, encontrou um café muito bacana, desses chiques, e resolveu que hoje ia gastar um dinheiro num cafezinho bom. Ele não faz isso sempre, claro. O dinheiro que ele e sua esposa ganham, mal dá pra pagar o financiamento do apartamento e sobrar para as compras do mês. O que acontece é que hoje Jorge se sentia particularmente deprimido e desiludido. Depois de mais de um ano na empresa, pensava que ia ser promovido ou pelo menos ter uma melhora no salário, mas não. Quando falou com o gerente nessa manhã, ele consultou o sistema e, então, negou sumariamente o aumento com um sorriso irônico no canto do rosto e um “Vá Trabalhar” logo depois. Porém, por coincidência dessas que o jovem mulato apelidou de “coincidências intencionais”, Serginho, branco, dezenove anos, sem filho e que vive com os pais no Tatuapé acabou sendo promovido supervisor da seção e agora seria o chefe de Jorge. Ele imaginava se o sistema havia indicado que essa ação era melhor para a empresa.

E, por isso, Jorge entrou naquele lugar chique. Era uma espécie de consolo. Ou talvez, de revolta pessoal. Pediu um expresso e um pão de queijo e no caixa lhe pediram todo o dinheiro que tinha em sua carteira. “É melhor esse negócio ser bom mesmo.”, apesar de que a música clássica de fundo, as poltronas e o ar condicionado já pudessem valer aquele preço. Sentou-se confortavelmente, meio sem jeito, numa das poltronas e aguardou que a mocinha trouxesse seu pedido. Ficou ali, apreciando as pessoas com seus ternos e gravatas, seus sapatos lustrosos e celulares modernos. Todos pareciam estar sorrindo, como que em um ritual pós-almoço cotidiano. Todos pareciam incomodamente felizes. Foi aí que ele se surpreendeu. Uma pessoa de uma outra mesa o encarou e se levantou. Veio em sua direção e parou em pé ao lado da mesinha enquanto a mocinha servia o pedido de Jorge. Jorge ficou meio sem jeito e o rapaz quebrou o gelo:

- Boné, é você? - Boné era o apelido de Jorge no tempo da faculdade. Haviam dado esse apelido para ele no segundo ano por que ele sempre estava de boné. Ninguém soube que o boné foi por causa e um acidente que ele teve quando a casa do pai dele desabou no barranco e ele quase morreu. Teve vários pontos na cabeça e até hoje a cicatriz. Mas eram bons tempos aqueles da universidade. Foi o tempo na vida de Jorge em que ele ainda acreditava no mundo. Diziam que menino pobre tinha que se esforçar pra entrar na pública. Ele não foi um desses. Entrou numa particular meia boca que mal conseguia pagar. Mas ia conseguir vencer na vida assim mesmo. Ah, como ele era tolo naquela época. O rapaz continuou: - Claro que é você. Tenho certeza. Como era mesmo seu nome… Jorge, não é?

- Isso, isso mesmo! - Disse Jorge enquanto colocava açúcar em seu cafezinho. - E você? Quem é?

- Sou o André... Da universidade, lembra de mim? - Jorge se lembrava vagamente dos amigos da faculdade. Quando estava no penúltimo ano sua filha nasceu. Foi quase por milagre que conseguiu concluir o curso. Então, resolveu fingir:

- Claro, claro que me lembro. Senta aí.

- Cara, a quanto tempo! Nunca mais te vi. O que aconteceu contigo?

- Sei lá cara… Trampando, trampando e trampando mais. Duas filhas pra criar é osso.

- Puta merda! Meu, duas filhas já? Que coisa... E onde ‘cê ‘’tá trampando?

- Na Falasse… Telemarketing ativo.

- Cara, que bosta. Justo você? Lembro que você era um dos melhores nos tempos de facu. - Ver o outro rapaz menosprezar seu trabalho só o deixou mais para baixo. Então olhou. André vestia um terno bonito, caro, com colete, gravata e sapato lustroso. André pertencia a esse lugar. Jorge não.

- A vida parece ter sorrido pra você então, né? - Disse Jorge, tentando mudar o assunto.

- Mais ou menos isso. Tenho uma filha, mas agora moro em Higienópolis. Vim aqui no “centrão” hoje visitar um cliente, mas não aguento mais essa vida. Só que tive que mandar embora meu representante comercial daqui dessa região e não teve outro jeito. Tive que vir para cá.

A verdade é que depois de ouvir “Higienópolis”, Jorge não prestou muita atenção nas outras coisas. “Caramba! Hi-gi-e-nó-po-lis! Só as elites!” É quase como se fosse o sonho do próprio Jorge. Sem querer, esses pensamentos foram ficando em voz alta e Jorge disse:

- Só falta você dizer que é o dono da empresa…

- Sou, sou sim. - Respondeu André. - Com outros dois sócios. Montamos a empresa com uma ideia que tivemos no último ano da facu. Lembra daquele monte de porcarias que comíamos naquele tempo? - “Como esquecer! Comi uma porcaria assim ainda hoje”, mas se conteve e apenas afirmou com a cabeça e deu mais uma golada no cafezinho. - Então... Numa dessas, num desses botecos, encontramos com o Telório da turma de economia. Ele tava fazendo o trabalho de graduação e o Dennis e eu colamos nele. Era um método automatizado para gestão de empresas. Cara, recebemos um financiamento gigante pra por a ideia no ar. Um ano depois da graduação recebemos nosso primeiro cliente grande. E essa é a história da DANTE.. Já ouviu falar? - Se Jorge já tinha ouvido falar? A própria Falasse era cliente da DANTE.

- Você tá brincando, né? Quer dizer… “A” DANTE Consulting?

- É meu caro... DANTE é uma junção do começo dos nossos nomes. A ideia deu tão certo que já tem dois anos que saímos do país. Hoje, além de termos uma boa amplitude no mercado nacional, também vendemos para Peru, Venezuela, Colômbia, Paraguai, México e, mês que vem, estaremos no mercado americano. - O jovem operador de telemarketing ficou estupefato. Era impressionante.

- Tá… Mas como vocês fazem? O software de gestão de vocês eu já vi na Falasse. Ele é impressionante! Trava indicadores desde a operação até os níveis estratégicos! Inclusive, creio que hoje não recebi um aumento por causa desse sistema estúpido.

- Ei, vai com calma… A Falasse nem é nosso melhor cliente. O sistema dele está mal configurado e eles pagam somente o plano básico. Mas em clientes melhores, a gente vê a “mágica” funcionar.

- Legal cara. Legal mesmo! Olha… Eu tenho que ir. Já passou do meu horário do almoço, e…

- Não, não, eu entendo… Mas Jorge, por que você não faz o seguinte… Passa lá no nosso escritório daqui do centro depois do trabalho pra a gente bater um papinho…

- Não vou poder - respondeu Jorge meio instintivamente…

- E por que? Olha… Vai ser uma oportunidade de ouro. Poderemos conversar um pouco… Quem sabe eu não te ajudo a sair dessa vidinha?

- Mas…

- Cara. Aparece lá. Às seis da tarde. - O jovem engravatado retirou um cartão da carteira, onde dizia “André Nunes - Diretor Comercial”, e o logo da DANTE, além de um número de celular e uma direção na Rua Sete de Abril.

- Tá bom, vou ver se consigo. Às seis, né?

- “Vou ver se consigo”? Jorge, a oportunidade não vem assim para todos. Aparece por lá.

Jorge concordou com a cabeça e apertou a mão de André antes de sair apressadamente pela porta comendo o último pedacinho de seu pão de queijo.

O operador de telemarketing tinha orgulho. Tinha brio. Entendia que as coisas não tinham saído tão bem em sua vida, que passava agora por um momento de complicações, de turbulência (como se ele já houvesse voado de avião para entender essa metáfora), mas que ia conseguir se levantar. E, além de seu orgulho, a arrogância e prepotência do antigo amigo da faculdade era impressionante.

Porém, estava cansado. Cansado de lutar uma luta desleal, cansado de se deixar ser empurrado pela vida. Cansado da pinga barata da padaria, da cerveja com gosto de mijo, da televisão velha, do celular velho, do carro acabado, das contas vencidas. E foi esse cansaço que fez com que, ao invés de dirigir-se para o metrô República como fazia todos os dias, estava indo na direção daquele cartão. Ligou para a esposa e disse que não demoraria, que ia ver uma oportunidade de trabalho. Teve que escutar Luciana de oito anos pedindo que o pai trouxesse um chocolate e Larissa de três chorando de fome antes de desligar.

Foi assim que chegou ao prédio reformado às cinco para as seis. Ao entrar, no saguão, notou que quatro dos cinco andares era da DANTE. “Uau!”, pensou ele. Foi à portaria e falou com o recepcionista que rapidamente se comunicou com outra pessoa que autorizou a subida. Após o registro e o elevador, chegou a outra recepção no quarto piso. A atendente já estava de saída e pediu a Jorge que aguardasse que o André já viria falar com ele.

Após longos e tediosos minutos folheando uma revista de negócios, André saiu de uma sala com um senhor oriental e uma senhora magrela. Se despediu deles e ao fechar a porta, veio na direção de Jorge.

- Fala meu amigo. Que bom que veio. Desculpe-me a demora. Me acompanhe por favor. - Jorge apertou a mão de André e o seguiu até a sala indicada. Uma sala de reuniões grande, com uma mesa comprida e várias cadeiras ao redor. Na lousa era possível ver alguns gráficos e rabiscos feitos na última reunião. Se sentaram e, sem aguardar, André seguiu:

- Jorge, sei que pode parecer agressivo, mas qual seu salário atual?

- Ah, relaxa. Não é tão “agressivo” assim. - Mas Jorge se sentiu sim um pouco incomodado com a pergunta. - Ganho mil quatrocentos e cinquenta reais. Registrado.

- Por mês? - André pareceu um pouco indignado. Ainda assim, Jorge respondeu:

- Sim, por mês.

- Tá. Você tem alguma experiência no ramo de cobrança?

- Bom… Trabalho com Telemarketing Ativo no momento, mas não, não tenho experiência com scripts de cobran… - André o interrompeu

- Não, não. Quero dizer no ramo de cobranças presenciais.

- Você diz recebendo clientes para negociação?

- Mais ativo, na verdade. Visitando clientes não pagadores.

- Não. Não tenho nenhuma experiência.

- Bem… O que me diz de fazer um teste? Simples assim. Você vem comigo e faz a cobrança. Se fizer bem o trabalho e gostar, o emprego é seu. Senão, é só ir embora.

- ‘Tá, mas qual o salário?

- Não trabalhamos com salário para esse serviço. Na verdade, não estou contratando alguém para a DANTE, mas sim para uma das minhas atividades “paralelas”. O pagamento é por comissão. Para esse trabalho, se você conseguir que o cliente pague o que deve, te pago dez por cento do valor. - Jorge olhou desconfiado.

- E estamos falando de quanto exatamente?

- O valor devido nesse caso é de duzentos e cinquenta mil reais. Se você conseguir o pagamento, vinte e cinco mil são seus. O que me diz?

Jorge sabia que deveria ser algo ilegal. Sabia que iria por em risco sua vida. Mas o dinheiro era bastante. Era mais do que ele ganharia em dois anos. Nem hesitou:

- Feito. Mas gostaria de saber um pouco mais do que se trata e,... - Interrompido mais uma vez.

- Não! Quanto menos você souber, melhor. - Levantou-se. - Vamos?

- Já!?

- Sim, já! Seu “teste” está na Rua Santa Ifigênia e só estará lá até as oito da noite. - Já eram dez para as sete. - O tempo urge.

Jorge refletiu um pouco mais, mas notou que não tinha mais volta. Foram.

Seguiram pelas ruas sujas do centro, com sua população de mendigos e beberrões, com seus cine-pornô e trabalhadores, com o cheiro de esgoto e fumaça e viraram a esquina da Ipiranga com a Santa Ifigênia apressadamente. foi então que André diminuiu um pouco o passo.

- Jorge, de outras vezes espero que venha melhor vestido. Mas para o trabalho de hoje vai servir. ‘Tá vendo aquele prédio? - E apontou para um cor de creme, antigo. Sem esperar resposta, prosseguiu: - Suba pelas escadas até o segundo andar. Vá até a sala vinte e três e procure pelo Marcão. Ele tem uns trinta anos, quase da sua altura, cicatriz no lado esquerdo do rosto. Suba e me traga a maleta com o dinheiro. Esperarei aqui. - André olhou ao redor e puxou um canivete longo de seu bolso. Entregou para André. - Mais uma coisa. Além da maleta, preciso de um dedo dele como juros do atraso.

O rapaz olhou assustado. Pegou o canivete meio que por instinto, mas balançou a cabeça.

- Cara, como assim arrancar um dedo? ‘Cê ta louco?

- Guarda esse canivete seu animal! - Agrediu André. - Vai senão eu chamo os guardas ali na próxima esquina e falo que você ta tentando me assaltar. Agora vai! Vai logo! E nem pense em fugir com o dinheiro senão eu acabo com tua raça, mané.

Jorge se afastou meio de costas, e saiu. Sentiu-se com muito medo, acuado e quase chorando. Sentia-se mal, estômago embrulhado, ânsia de vômito, suava frio. Caminhou olhando para todos os lados e todas as direções. Pareceu uma eternidade mas, por fim, chegou ao prédio.

Subiu as escadas zonzo, brincando com o canivete no bolso. Olhou as portas no segundo andar. “vinte e sete, vinte e cinco, vinte e três. Fácil demais encontrar.”, refletiu ele. Respirou fundo e, vendo que não havia mais como sair dessa, pensou no dinheiro, Pensou em sua filha passando fome. Pensou em poder pagar uma escola para cada uma, em terminar o financiamento da casa. Pensou em sua esposa, em suas frustrações. E, sentiu uma força que não possuía antes. Um grito de frustração, de rancor, de ódio com a sociedade. Bateu forte na porta com o cabo do canivete.

- Já vou. - Escutou do outro lado.

Bateu forte novamente.

- Que inferno, já vou! - Escutou outra vez. Jorge Estava ansioso. Estava suando frio, era uma sensação vertiginosa. Não sabia se fugir ou se esperar a porta abrir. E no momento de dúvida, as trancas da porta começaram a mover-se. Quando a terceira e última tranca foi retirada e ele viu a maçaneta girar, sem pensar duas vezes, com o canivete ainda na mão, Jorge Impulsionou o corpo para trás e em seguida para frente, levantando o pé até o meio da porta e dando um coice violento. Ela bateu na cara do homem atrás dela, que soltou a maçaneta e caiu encostando na parede. Jorge segurou a porta no retorno e empurrou mais uma vez para frente, abrindo-a. Viu estatelado no chão o corpo do moço da cicatriz. Havia desmaiado com a pancada na cabeça. Invadiu o apartamento e viu que o rapaz trabalhava com algo relacionado com computadores. Pensou rapidamente virando os olhos e viu vários cabos de rede azuis e outros negros. Pegou alguns e amarrou as pernas e os braços do rapaz. Ainda inseguro e ofegante, arrastou-o e sentou-o com dificuldade na cadeira, amarrando também o pescoço ao encosto.

Fechou a porta assustado, quase chorando. Respirou fundo e pensou “Meu Deus, o que estou fazendo?” Olhou ao redor e buscou uma jarra com água que estava na micro cozinha do apartamento. Jogou a água na cara do homem da cicatriz. Ele despertou assustado.

- Marcão? - Disse tentando soar amedrontador, mas na verdade parecendo um medroso. - O-o André mm-me mandou aqui. Me entrega a maleta.

- Cara, o que é isso? Você invade a minha casa e… - Assustado, Jorge falou num tom quase sombrio.

- Fala logo onde está que eu vou embora. Não fala e - Abriu o canivete. - e… e eu fico.

- Seu puto! A maleta ta ali. - Apontou o com o queixo. - Minha testa ta sangrando seu imbecil. Isso não vai ficar assim! Pensa que eu não guardei seu rosto? Guardei sim! Isso não vai ficar assim! Você vai ver!

Jorge pegou a maleta e hesitou. Precisava concluir o trabalho. Tremia com o canivete na mão. O outro soltava imprecações e xingamentos. A garganta presa no encosto da cadeira estava vermelha. Ele não sabia como arrancar um dedo. Ficou com medo do cara se mexer. Mas lembrou da sua filha chorando. Das noites sem dormir, das dificuldades da vida. Da conta no vermelho no banco. Deu uma pancada bem forte na cabeça do Marcão, sem pensar. Desacordou o rapaz novamente. Pegou um trapo e enfiou na boca dele para que não gritasse. Amarrou as mãos ao encosto da cadeira e passou outro cabo na barriga do cara amarrando-o à cadeira ainda mais forte. Analisou o fio do canivete e viu que era bem afiado. Pegou o dedo indicador da mão esquerda, o que parecia mais fácil de pegar, passou a lâmina por entre o médio e este dedo e girou, puxando, cortando o dedo bem na junção com a mão. Puxou freneticamente, serrando o dedo e conseguiu arrancá-lo. Tudo estava escuro, silencioso e, de uma só vez, ouviu o grunhido do outro homem. Um som seco, abafado pelo pano na boca, com lágrimas nos olhos. O sangue escorria de onde o dedo fora arrancado. O rapaz se debatia enquanto lutava contra os cabos e contra o pano dentro de sua boca. Num momento de pena, tremendo muito, Jorge, chorando, pegou um pano de prato e colocou nas mãos amarradas do outro homem, tapando o sangramento. Mostrou o dedo para ele e, sem saber o que dizer, apenas pronunciou aquela palavra que nunca mais esqueceria:

- Obrigado!

Saiu do apartamento deixando Marcão lá, amarrado, em situação deplorável. Quis se importar com ele, mas não podia fazer mais nada. Saiu e, quando chegou ao térreo, se deu em conta que havia carregado o dedo ensanguentado na mão e o canivete aberto na outra. Se encontrou com André que rapidamente se aproximou.

- Fecha isso seu babaca. Entra aqui! - E abriu uma porta de uma pequena sala no fundo do corredor. Eles entraram. André pegou o dedo da mão de Jorge e guardou num lenço que tinha no bolso. Abriu a maleta e conferiu visualmente o dinheiro. Retirou ali mesmo, num quartinho no meio da Rua Santa Ifigênia vinte e cinco pacotes de notas de cem.

- Tome. Aqui está sua parte. Parabéns. Está contratado. Apareça no escritório amanhã para os detalhes de nosso acordo. Vista um terno negro, camisa branca e gravata negra. Sapatos lustrados. Ah, e chegue bem cedo. Agora vá embora. E pode ficar com o canivete de brinde.

Jorge ficou vendo André sair do quartinho com a maleta, indo embora apressadamente. Guardou o dinheiro como pode, espalhando em partes de suas roupas e saiu.

Parou no primeiro boteco que encontrou e pediu um bombeirinho e depois outro. Quando chegou em casa, já era tarde. Beijou suas filhas, sua esposa e foi se banhar. Chorou pelo que fez e pela visão do desespero do outro homem mas, estranhamente, sentia prazer nisso. Um prazer estranho, sórdido. Uma realização por haver conseguido realizar a tarefa, um orgulho pelo dinheiro conquistado. Dormiu e teve bons sonhos nessa noite.



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Parte II

Parte III

Parte IV

sexta-feira, 11 de março de 2016

Contigo quero estar!




Eres da luz a semente
E tua face resplandece
O brilho que a ti pertence
Tua força enaltece
Mas não fazes de mim temente
Nem ofusca o teu raiar
Uma certeza me trazes somente:
De contigo querer estar

Eres da pira, fogo potente
Que de calor envaidece
E teu ardor incandescente
A tudo que toca aquece
Mas não vagas erroneamente
Tampouco teimas em queimar
Uma certeza me trazes somente:
De contigo querer ficar

Eres brisa que, suavemente
Refresca e enternece
E teu soprar, irremediavelmente
Em tal momento esmaece
Mas não se vai tristemente
E nem esquecida poderia ficar
Uma certeza me trazes somente:
De contigo querer estar

Tal é tua força, naturalmente
Que prende em querer arrastar
Mas de tudo, fica somente,
que contigo eu quero estar.


segunda-feira, 7 de março de 2016

Caminho...



Ao caminhar pelo mundo demente,
Entre desterros e forças contrárias,
Eu descobri o saber entre párias
E que a vida ensina por sempre.

Vivi verões gloriosos e quentes.
Invernos pálidos, secos, gelados.
E encontrei o saber encrustrado.
Em cada época, era, e tempo.

Eu vi a força de ventos e mares,
Subi montanhas, desci em cavernas.
Fui a locais, respirei outros ares.

Amei e fui desejado, é certo,
Eu vivi, eu aprendi, eu fui sábio!
Somente para um dia perecer...


sexta-feira, 4 de março de 2016

Quanto custa?



O menino chega na banca de jornal e pergunta, apontando para a barra de chocolate:

- Quanto custa?

- Três reais. - responde o jornaleiro. O garotinho olha para as moedas na mão.

- Tó! - Diz entregando três moedas de cinquenta centavos ao vendedor.

- Aí não tem três reais.

- Tem sim!

- Não. Aí tem um e cinquenta.

- Mas tem três moedas…

- Só que são três moedas de cinquenta centavos, menino. Não sabe fazer conta não?

O menino fica zangado. Aponta para um pacotinho de balas.

- Quanto custa?

- Dois.

O menino fica pensativo.

- Faz por três moedas de cinquenta?

- Não.

- Ah faz, vai…

- O menino, não é não!

O rapazinho abaixa a cabeça e aperta as moedas na mão. Aponta para um outro pacotinho de balas.

- Quanto custa?

O jornaleiro respira fundo.

- Dois e cinquenta.

- Faz mais barato?

- Menino, não! Com um e cinquenta te vendo dez balas dessas aqui. - E aponta com o dedo.

- Nossa, tá caro, né?

- É.

- Vende quinze?

- Não. Vendo dez.

- Mas tá muito caro. O que mais você vende?

O jornaleiro dá o troco a uma senhora que pagava por sua revista e em seguida diz:

- Que dá para você comprar com essas moedas?

- Claro, né?

Olhando bravo, o jornaleiro diz:

- Só as balas.

- Mas… só aquelas? - E aponta.

- Sim. dez delas. Vai querer?

- Faz doze?

- Dez, menino.

O menino para e pensa. Vê então o pacotinho de figurinhas do brasileirão. Aponta.

- Quanto custa?

- Dois e cinquenta moleque.

- Não dá pra levar um pacotinho, né?

- Não menino, não dá.

O menino pensa novamente, olha as balas… Olha as figurinhas e tem uma ideia.

- O senhor me empresta um real?

- Mas menino, claro que não!

Abaixa a cabeça novamente. Fica pensando. Olha novamente para a barrinha de chocolate. Aponta.

- Quanto custa mesmo?

O jornaleiro respira fundo.

- Três reais, moleque.

O menino olha as moedas, sacode os bolsos, mas nada…

- Posso ficar devendo?

- Não.

- E por que?

- Não faço fiado.

O menino dá de ombros. Mostra a mão com as moedas para o jornaleiro.

- Tó.

- Vai levar as balas?

- Vou.

O jornaleiro separa dez balas no balcão.

- Pode pegar.

O menino pega cinco em uma mão e cinco em outra.

- Obrigado. - O menino diz e sai da banca. Na frente está um menino, de rua. Pedinte.

- Dá uma bala aí. - Ele diz para o menino. Ele olha para uma mão, olha para outra e aponta com uma mão para o menino de rua.

- Tó.

Abre a mão e solta as balas na mão do menino. Guarda as outras no bolso e sai andando para um lado. O menino de rua pega uma para chupar e guarda as outras.

- Valeu mano!

O jornaleiro sorri e guarda as moedas.