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Parte I
Parte II
Dois homens bem vestidos entravam pelo saguão de um importante edifício na pequena rua Três de Dezembro no centro de São Paulo naquela manhã de segunda-feira. O mais velho, de olhos puxados trajava um terno cinza, gravata vinho e camisa branca, além de uma barba branca, bem feita. O outro, um pouco mais jovem, com a tez moreno-escura, trajava um terno cor de creme, e uma camisa também creme, um pouco mais escura. Enquanto o primeiro homem levava consigo uma valise, o segundo não trazia nada às mãos além de um jornal “O Estado de São Paulo”, do dia, em cuja manchete principal era o aumento do número de mortos na capital nesse ano em comparação com o mesmo período no ano anterior. Nada parecia fora do comum. Ambos entraram no elevador e apertaram o botão para o quinto andar.
- Francamente, o Santos já não é o mesmo a muito tempo - Disse o senhor mais velho ao outro, fazendo uma referência à segunda notícia principal de capa que mostrava a derrota do time para a Ferroviária.
- É verdade seu Áureo. Meu pai já nem acompanha mais futebol por causa disso.
- Beto, mas se a gente não for acompanhar futebol, o que vamos acompanhar? Os obituários?
Ambos riram enquanto saíam do elevador para o corredor em penumbra. Se dirigiram até uma sala onde dizia “Tanaka e Jamba Advogados”. A porta estava trancada.
- Diacho! - Praguejou Beto - A Luzia não chegou ainda??
- Quando ela chegar, mande-a embora e contrate outra recepcionista. Cansei dela.
- Essa porta ainda está emperrando - O jovem empurrou com força após destrancá-la e, enfim, conseguiu abrir o escritório.
Entraram.
Áureo se prontificou em ligar a chave geral e acender as luzes, enquanto Beto entrou para a pequena copa para abrir as cortinas e deixar o ar entrar. Ao passar pela porta, porém, foi surpreendido por uma mão vinda de trás tapando sua boca, enquanto outra lhe pressionava algo pontiagudo em suas costas. Uma boca se aproximou de sua orelha esquerda.
- Não se mova, não grite, não fale. Meu negócio aqui não é com você, mas com seu sócio. Se ficar calado e cooperar, não sairá machucado e tudo acabará rápido. - Disse a voz e começou a afrouxara boca do jovem rapaz. Quando pode falar, ele perguntou, tremendo de medo, em voz embargada.
- O que devo fazer?
- Nada Doutor Roberto. - E o empurrou para uma cadeira. - Apenas ficará aqui, sem incomodar.
Com grande habilidade, o intruso pegou uma corda forte e amarrou o advogado ao assento e em seguida tapou sua boca. Foi então que Beto viu que, desmaiada no chão da copa estava Luzia, a recepcionista, inconsciente. Foi então que se ouviu da outra sala:
- Beto, você sabe onde está a pasta do caso da Senhora Dorneles? Não tô encontrando aqui no computador. - O intruso deu alguns passos para fora da cozinha.
- Olá Senhor Áureo, como tem passado?
- Quem é você? Onde está o Beto? Vou chamar a polícia.
- Se você chamar a polícia, terá que explicar o sangue que haverá na sua cozinha. - Sr. Áureo abaixou o celular.
- O que você quer?
- Você pediu um empréstimo à DANTE a um ano. Eu vim receber o pagamento. São duzentos mil reais. Pague agora. - O cobrador foi se aproximando da mesa do advogado. Cleber estava mais velho. um ar mais altivo, imponente. Mas o que mais assustava era seu olhar. Havia algo de impiedoso, de intrépido e de amedrontador naqueles olhos castanhos que faziam você não querer olhar diretamente para eles. Era como a profundeza do mar ou a escuridão da lua nova.
- Mas eu não tenho o dinheiro, já disse a seu representante. Por favor, me dê um novo prazo… Eu juro que vou pagar. - Cleber já estava bem próximo à mesa. A faca à mostra somente fazia com que o Doutor Áureo estremecesse mais.
- Seu prazo venceu ontem. Eu vim cobrar o pagamento e os juros. - O rapaz pegou o celular e jogou na lixeira próxima à mesa. - Mas se não tiver o dinheiro, ainda assim receberei ambos.
- Mas eu não tenho. - Desatou a choramingar. Sua seriedade foi abaixo. - O empréstimo tinha sido para subornar o juiz no caso da Deputada Jakeline mas o advogado dela pagou mais. Resultado, fiquei sem o dinheiro e ainda perdi a causa. Por favor, me dê mais tempo. Estou entrando num caso em que o Pastor Herivaldo me garantiu que ganharemos e será uma boa grana.
- Sr. Áureo, o senhor não tem mais dinheiro nem para o Lobby. E eu não vou voltar assim, de mãos abanando.
- Mas eu tenho família. Por favor, não faça isso comigo. Eu preciso tentar. Me dê uma semana...
- Vamos fazer o seguinte doutor. Me simpatizei por você. Além disso, meus associados estão a par do processo do Pastor Herivaldo contra o Bispo Manjuvo. É um caso de plágio, não é? - O advogado balançou ferozmente a cabeça afirmativamente. - Assim sendo, vou cobrar apenas os juros hoje. E te dou um prazo de até um dia após a publicação do resultado no D.O. O que me diz?
- Mas eu não tenho dinheiro para pagar nem os juros. Por favor…
- Mas bom senhor, quem disse que os juros serão pagos em dinheiro? Ponha suas mãos sobre a mesa, com as palmas para baixo, sim?
O homem sabia o que viria. Pensou um pouco, mas não viu nenhuma solução. Seus olhos começaram a chorar sozinhos, sem controle. Ele colocou lentamente ambas as mãos na mesa. - Faça o que deve ser feito. - Disse e ficou olhando para o cobrador.
Cleber pegou o facão e fez um pequeno corte na primeira falange do dedo anelar de cada mão do Sr. Áureo. Em seguida, olhou para o Sr. que chovara desconsolado.
- Dr. Áureo Tanaka, de qual dos seus dedos anelares o senhor gosta mais? - O advogado não respondeu. - Pois bem. Eu levo o da direita então. - E cravou a ponta do facão da metade esquerda da junção entre a primeira falange do dedo direito e o restante do dedo. Em seguida, puxou para o lado e apertou com força. Um corte firme, preciso. Mas o advogado não gritou, não tentou impedir, nem buscou mover-se. Ficou ali, parado, sentado, chorando pateticamente, enquanto Cleber pegava a primeira falange do dedo anelar da mão direita e colocava dentro de seu lenço de bolso.
- Pronto. Desculpe-me. Os juros estão pagos e temos um novo acordo que, creio, será de agrado de meu chefe. - Guardou o lenço com o dedo no bolso. - Ah, já ia esquecendo. Talvez você não veja sua filha de hoje até o dia do julgamento do Bisbo Manjuvo. Talvez, como incentivo, ela venha a frequentar as cerimônias do Pastor Herivaldo… Enfim, é melhor que cumpra nosso acordo, ok?
Ainda chorando, Sr. Tanaka respondeu afirmativamente.
Cleber desceu pelas escadas como normalmente fazia quando tinha um trabalho. Saiu do prédio e virou à esquerda, se dirigindo à Rua Quinze de Novembro. Os camelôs começavam a colocar suas lonas no chão para espalhar os produtos para venda enquanto os engravatados se dirigiam ao prédio da BOVESPA. Somente mais um dia normal. Pegou seu celular informou o status da missão a seu superior, Jânio, substituto de André depois que ele morrera de câncer de estômago e seguiu seu caminho para sua segunda missão, bem mais longe do centro que a primeira.
Tomou o metrô na praça da Sé e depois de uma viagem tranquila até a estação Corinthians-Itaquera, onde fez a baldeação para o trem da linha 12, descendo na estação São Miguel. Caminhou até a Avenida Marechal Tito e, em seguida, até a Avenida Nordestina. Rua feia e estreita, com paredes pichadas e sujas. Caminhou com seu terno chamativo para a região nesse horário até a sede da Igreja do “Movimento Evangélico da Real Dinastia do Advento”. Uma dessas novas igrejas feita por pastores que gozavam de isenção de impostos para poder receber dinheiro dos fiéis em troca de um lugar ao lado de Deus no dia do advento.
Ao lado do templo estava uma casa bonita, um sobrado com balcão. Era aí que Cleber teria sua próxima missão. Tocou a campainha e esperou. A janelinha da porta abriu e uma senhora, cabelos grisalhos e ar cansado respondeu.
- Pois não?
- Minha senhora, o Bispo Eduardo Manjuvo está?
- Um minuto.
A senhora entrou e, enquanto esperava, com uso de uma micha, ele forçou, com precisão, a tranca da porta, destrancando-a, mas deixando-a fechada. Se afastou e guardou a ferramenta quando ouviu os passos. Ficou bem próximo à porta. Ainda pela janelinha, O Bispo Eduardo apareceu.
- Bom dia meu irmão, em que posso lhe ser útil?
- Olá Bispo, corte a ladaínha. Meus associados me enviaram para cobrar sua dívida e os juros.
- Eu não sei do que você está falando, e…
Cleber não esperou a explicação. Meteu um pontapé na porta destrancada e ela surpreendeu o bispo de tal forma que ele caiu para trás soltando o pequeno revólver de calibre 22 que tinha na mão. Ele se projetou para dentro da casa, chutando a arma para um cômodo no lado direito. Enquanto o bispo tentava se recompor, ainda no chão, Cleber empurrou a porta para trás com habilidade, fechando-a, e pisou com força no joelho do bispo caído. Um urro estridente de dor saiu da boca do homem, enquanto a senhora de cabelos prateados se projetava pelo corredor gritando. Em apenas três passos largos, o cobrador a alcançou e deu um murro bem forte no nariz da velha. Ele teve a delicadeza de segurá-la nos braços antes que ela caísse, para que não se machucasse no chão. Se virou para o bispo e voltou caminhando lentamente enquanto ele gritava pela dor no joelho.
- Eu odeio o seu tipo, senhor Manjuvo, mas estou aqui apenas para fazer meu trabalho. - O bispo começou a se sentar, mas Cleber empurrou-o para baixo novamente com o pé em seu peito, mantendo-o nessa posição. - Onde está o dinheiro?
- Eu não o tenho. Por favor, tenha piedade! Eu sou um homem de bem. Nem minha mãe nem eu merecemos isso…
- Você sabia no que estava se metendo quando pediu o empréstimo para apoiar o orfanato. Seus fiéis podem ter acreditado nas suas pregações imbecis a respeito de multiplicação do dinheiro, mas nós sabemos a verdade. Sua igreja cresceu no bairro a custo alto, mas agora é hora de pagar. Onde está o dinheiro?
- Eu não tenho! Eu não tenho! Por favor, não me mate! Tenha piedade! Por favor. - Ofendido com a comparação feita de sua função com a de um assassino, Cleber levantou o pé do peito do bispo e bateu com o salto do calcanhar do sapato com força no queixo do homem desesperado. Ele ficou atordoado e gemendo, e brotou sangue de sua boca. Sentiu seus dentes enfraquecerem e uma tontura repentina. Não pôde gritar.
- Eu não sou assassino seu verme. - Cuspiu. - Escória! Vou perguntar só mais uma vez. Onde está o DINHEIRO!
Assustado e aturdido, o jovem bispo verteu lágrimas que se misturaram ao sangue. Olhou para a mesa, onde estava o livro sagrado. Cleber estendeu a mão e pegou a Bíblia. Abriu o zíper e caíram dólares de dentro. Eram umas vinte notas de cem. O religioso se sentou no chão novamente e olhou com ar de desespero.
- Não entendi, senhor. O senhor está tentando me subornar? Com dois mil dólares, é isso? Eu não posso acreditar. O senhor é uma lombriga rastejante e acha que eu sou da mesma laia? Onde está o dinheiro do empréstimo seu filho de uma puta? - Somente agora Cleber tirou sua faca. - Se o senhor não tem o dinheiro da dívida - e jogou os dólares sobre o pastor - vou te impor uma nova condição de pagamento. A audiência do processo do Pastor Herivaldo contra o senhor é amanhã, não é? - O homem, ainda desesperado, balançou a cabeça afirmativamente. - O senhor irá propor um acordo no qual o senhor reconhecerá o plágio no nome da sua igreja e que o copiou diretamente do Movimento Evangélico da Redenção por Deus no Alto. Assinará o acordo propondo um parcelamento no pagamento da indenização de não mais que dez parcelas e solicitará um prazo para mudança do nome da sua igreja de não mais de trinta dias. Estou sendo claro? - Vociferou.
- S-sim, sim! - respondeu o humilhado bispo.
- Está bem. Assim sendo, vou cobrar somente os juros hoje. - Com força, o cobrador pegou o bispo pelo pescoço e jogou de cara para o chão. Apoiou o joelho na base da coluna, abaixando-se e levantou a camisa do desesperado homem no chão. Com seu facão afiado, cortou uma lasca de uns cinco centímetros de comprido da pele das costas dele. Eduardo Manjuvo começou a gritar de dor, mas o grito deu lugar a um choro de sofrimento e de angústia. Cleber guardou em outro lenço no bolso da camisa a lasca de pele, se levantou e saiu pela porta, dessa vez, sem pedir desculpas.
No dia seguinte, tudo ocorreu como esperado. O Bispo Eduardo Manjuvo admitiu publicamente ao Pastor Herivaldo o plágio no nome e ficou de pagar uma indenização em um prazo de dez meses. Um terço desse valor iria para a Tanaka e Jamba Associados, que defendia o Pastor Herivaldo na causa e, com isso e um parcelamento da dívida, o advogado conseguiu saldar sua dívida com a DANTE sem maiores dificuldades.
Cumprindo com seu dever cívico de trabalhador honesto e pagador de impostos, dez meses depois, Cleber abriu uma denúncia de porte de arma ilegal contra o bispo Eduardo Manjuvo. E se aproveitando dos contatos que a DANTE adquirira anos antes na Secretaria de Segurança Pública, pediu sigilo maior e agilidade ao caso. Em menos de um mês o Bispo Eduardo Manjuvo foi preso e condenado a trinta meses de prisão e uma multa de doze mil e quatrocentos reais. O dinheiro da multa seria revertido a ajudar o orfanato do bairro de São Miguel Paulista mas, dessa vez, sem propaganda religiosa. Cleber, o cobrador sentiu nessa missão que havia feito mais que seu trabalho. Havia feito um dever para com a sociedade em que vive e havia feito o bem. Anos mais tarde, quando suas filhas já estavam formadas e cada uma exercendo sua função para a sociedade, ele ainda se lembraria dessa missão com carinho pois ela o fez guardar um sentimento de justiça e de que, qualquer que seja sua função na sociedade, é possível usar os meios que tenha para fazer de nossa cidade um lugar mais justo.
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Parte IV