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Eram dez horas da noite quando o “Augustus” atracou no porto de Santos. Todos os passageiros desembarcaram como loucos desesperados. Balthazar teve que esperar até que houvesse espaço para sair. A neblina da madrugada já começava a se formar quando ele desembarcou. Ao pisar fora da prancha, em terra firme e ouvir as pessoas ao seu redor falando em todo o tipo de idioma e se sentiu só. Ao mesmo tempo, lembrou de sua conversa a algumas noites. Agora começava a contar seus “mil dias”.
Como se fossem cargas, os imigrantes, como ele, eram direcionados para os trens. Escoltados por policiais e agentes portuários, em fila, a caminho da estação, os homens, mulheres, idosos e crianças iam em iguais condições. Havia um ar de cansaço e uma atmosfera de penitência naquele cais de porto. O cheiro também não ajudava: Um odor de peixe podre, excremento de burros, vômito e urina eram carregados por todo lado pela umidade do ar e pela maresia. Os sons também eram uma confusão de latidos de cães, guinchos de rato, gemidos de enfermos e palavras em muitos idiomas diferentes. Eles se confundiam com o barulho incessante de um maquinário do qual aos poucos a fila se aproximava.
Havia uma tensão no ar que não parou ao adentrar ao trem. Ouviu uma voz gritando. Não entendia o que dizia, mas parecia estar repetindo em vários idiomas. Em dado momento, disse em alemão mal falado: "Esse trem seguirá sem paradas até a estação Hospedaria dos Imigrantes. Tenham todos uma boa viagem".
Seguiu a ladainha em outros idiomas mas Balthazar, fraco e ainda meio entorpecido pela viagem, dormiu encostado em sua cadeira no trem.
Já era noite novamente quando ele acordou. Outra fila. Agora para desembarcar do trem na estação da Hospedaria. Agora, porém, os odores já não eram tão fortes. Ou talvez seu nariz já tivesse se acostumado. Ele ficou para trás e acabou sendo um dos últimos da fila. Espirrou e tossiu uma tosse feia, dessas que a gente sabe que não está bem. Sentia-se muito fraco e simplesmente, mais uma vez, fez o que fez por grande parte da vida: seguiu.
Balthazar foi hospedado em um quarto grande com beliches onde a única diferença do navio que que estava antes era que aqui não balançava muito, a não ser quando o trem passava, parecendo que ia fazer com que tudo desmoronasse. Lá ele passou suas seis noites seguintes. Ele ficou pior, mas depois veio a descobrir que era só uma gripe forte. Foi lá que ele conheceu Joachim, um alemão que havia fugido da guerra e que agora ajudava os imigrantes. Era amável e bondoso, trabalhando como enfermeiro. Balthazar poderia jurar que teve várias conversas agradáveis com ele. Mas não viria a se lembrar de nenhuma dessas conversas no futuro.
Na sexta noite, Joachim acordou o então recuperado Balthazar de seu leito com dois tapas. Assustado, ele se levantou e, na penumbra, com uma vela na mão e olhos que Balthazar poderia jurar que estavam sangrando, ele mandou que ele se vestisse. Sem protestar, ele o fez e seguiu sem palavras pelos corredores, entre camas e roncos, até a saída do alojamento. Lá chegando, notou que as costas de Joachim estavam rasgadas. Roupa e pele. Como se fossem marcas de garras. Balthazar quis perguntar mas seu interlocutor o olhou, seus olhos eram de um vermelho-sangue pulsante. Um breve momento passou e ele disse simplesmente: "Siga-me".
Eles saíram da estalagem e andaram pela penumbra da noite até um carro que estava parado a duas quadras dali. Balthazar entrou seguindo seu guia e foram conduzindo o carro pelas escuras e sombrias ruas da cidade. Em dado momento, com uma voz monótona, Joachim disse: “Nosso mestre te está designando para o bairro do Pari. Lá você encontrará trabalho no cartório próximo ao endereço em que vou te deixar. Você ficará numa pensão à rua Carnot, no quarto de número 21. Aqui estão documentos para que você possa se identificar e sua primeira tarefa”. - Ele lhe entregou um envelope. - “Passarei em seis dias para coletá-la”.
Antes que Balthazar absorvesse tudo, estava parado à porta da dita pensão com o envelope na mão e vendo o carro partir.
Na pensão, ele foi recebido por uma senhora portuguesa que se apresentou como dona Alépia. Ela o fez entrar e mostrou seu quarto. Ouviu então o barulho da chuva o que fez com que a senhora subisse rápido pelo quintal da pensão, deixando Balhtazar apenas com um candeeiro aceso na mão à porta do quarto. Aquele pequeno quarto fedido no porão tinha paredes amareladas e sujas. O encanamento dos esgotos passava descoberto pelo teto, deixando à mostra o escurecimento daqueles tubos velhos. Os sons da água escorrendo por dentro dos canos se confundiam com os sons vindos da chuva do lado de fora numa sinfonia aterradora. O corredor externo tinha um chão vermelho e uma lâmpada pendurada no teto que balançava com o vento. Já dentro do quarto vinte e um, havia um cheiro de parede mofada e de madeira velha, de frango assado velho, de suor e odores humanos velhos, de tinta nanquim nova e de sangue fresco. A mobília do extremamente apertado e claustrofóbico quarto era composta por uma cama antiga com um colchão fino e uma mesinha pequena com um banquinho.
“Copiar este texto em pele de carneiro curada, com uma pena de ganso. As partes em negro devem ser copiadas em nanquim e as partes em vermelho usando sangue comum. Todo o texto deve ser copiado durante a noite, após o último raio de sol e antes do primeiro, à luz de velas ou de candeeiro. Segue algum dinheiro para compra dos materiais necessários.”
Também havia cinco contos de réis. Balthazar retornou tudo ao envelope, colocando-o sob o candeeiro e o apagou. Soltou uma risada rouca, enfadonha, nervosa. Depois, recostou-se na cama tentando de alguma forma lembrar-se de sua família. Antes de cair no sono, chorou.
Crédito da imagem: São Paulo in Foco