sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Da Hipocrisia

 


Eu sempre pensei que a palavra hipocrisia teria alguma relação com cavalo por causa do suposto prefixo "hipo". São tantas palavras que começam com esse prefixo e que tem relação com o cavalo. Hipopótamo (que seria o cavalo do rio), hipocampus (cavalo-monstro marinho), hipogrifo (cavalo-grifo - parte cavalo, parte leão e parte águia). Então, tentando encaixar esse suposto conhecimento com o sentido conotativo (e até denotativo) atual da palavra, eu ficava imaginando que deveria ser algo como "agir como o cavalo". Não, isso não fazia sentido mas minha mente se deleitava com esse exercício de raciocínio meio ilógico de relacionar uns conhecimentos com outros.

Aí, entendendo um pouco de química, percebi que o prefixo "hipo" também tinha a noção de algo inferior ou menor. Inclusive, essa definição está no dicionário. Por exemplo, o ácido hiposulfuroso tem esse nome por ter uma redução no número de oxigênios, assim como o ácido hipoclososo, o ácido hipofosforoso e o ácido hipobromoso. Na medicina também esse prefixo tem essa finalidade... O hipotálamo fica sob o tálamo, a hipófise é chamada assim por crescer sob o encéfalo. Também em outros termos como o hipotireoidismo que é a queda na produção dos hormônios da tireóide e a hipoglicemia que é um distúrbio provocado pela baixa na concentração de glicose no sangue.

Logo comecei a pensar que talvez hipocrisia tivesse mais a ver com o hipo que vem do hypo grego (baixa ou inferioridade) do que com o ippos (cavalo). Parece fazer sentido, não? Mas aí teria um problema: se o "hipo" de "hipocrisia" fosse um desses prefixos, teria que haver um significado para "crisia". Mas o único significado que encontrei para "crísis" foi "a designação científica da vespa doirada". Se fosse para inventar um monstro para algum jogo, poderia criar o Hipocrisis que seria meio cavalo meio vespa doirada... Seria uma besta intrigante com forma de cavalo, cara e asa de vespa. Imagine o som desse animal galopando como um cavalo e zunindo como uma vespa. Teria uma grande atração por fontes de luz e se alimentaria de outros insetos, mas se reproduziria sexualmente e daria a luz a potros-larvas. 

Mas ainda não entendia o significado da palavra "hipocrisia". Somente então fui pesquisar a palavra inteira e então entendi que esse era o nome dado aos atores gregos. A arte da encenação para entretenimento era conhecida como "hupókrisis". Faz todo sentido. Os atores fingem ser quem não são mas não com a intenção de enganar e sim de divertir, servir ao público com sua arte. O próprio termo grego "hypokrínomai" significa "diálogo" e parece ter muito a ver com o significado original.

Então, como foi que essa palavra que estava associada à arte do palco e da diversão se tornou assim com um sentido tão horrendo no dia de hoje? Não se sabe. A palavra como tal na língua portuguesa provavelmente já tenha o mesmo significado desde o século XIV. Há quem creia que o sentido tenha a ver com a interpretação dos sonhos na antiguidade e talvez por isso que carregue consigo a noção de dissimulação ou charlatanismo. Mas isso não é provado. E talvez nem mesmo provável pois se os gregos usavam mesmo essa palavra para designar a nobre arte da atuação, dificilmente a usariam também para algo pejorativo. 

Porém, atualmente o conceito de hipocrisia é talvez um dos piores e mais comuns na nossa sociedade. É aquele que fala sem praticar o que fala, aquele que diz algo como certo mas na hora de agir não consegue. É aquele que não tem honra nenhuma e em quem não se pode confiar pois aquilo que ele fala não se reflete em suas ações. É aquele que atua sim mas em sua vida, usando máscaras diárias que não condizem em nada com a realidade que se vive. É o pai que diz amar seus filhos mas prefere ficar no trabalho ao invés de ir para casa; é a mãe que se esconde atrás das verdadeiras desculpas da correria do dia-a-dia para explicar suas falhas na maternidade; é o padre que prega no sermão aquilo que distorce para enquadrar sua falsa fé em seu cotidiano; é o político que promete e não cumpre; o médico que receita algo para virose quando ele nem sabe o que o paciente tem; é o professor que ensina para alunos que não aprendem nada e sai da escola dizendo "pelo menos eu fiz a minha parte".

Talvez fosse importante encontrar essa origem da palavra simplesmente para entender a origem de uma de nossas maiores enfermidades: a pandemia da hipocrisia. Mas não. A origem da palavra só fala de encenar e de agir como outra pessoa para entreter. Ela não fala nada sobre como usamos a palavra hoje. Imagino que esse conceito seja algo que se tornou uma necessidade de ser descrita e, como em tantos outros casos, "tomamos emprestado" um termo para pervertê-lo e torná-lo algo podre. Talvez, até mesmo nisso sejamos hipócritas.


Como um "bônus", o link da imagem (e os créditos dela também) é de um artigo em inglês sobre como a hipocrisia é o ato de fazer-se sentir melhor do que se merece...

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Melhor não namorar


“Felipe, sete vezes cinco”, me perguntou a professora em sua chamada oral. Sempre fui bom em cálculos mentais e a tabuada se mostrava fácil demais para mim. “trinta e cinco professora”, respondi orgulhoso. A Amanda me olhou e me senti envergonhado. Olhei para baixo, tentando parecer invisível. Não funcionou. “Carlinhos, nove vezes quatro”, e ele respondeu “trinta e seis”. Levantei os olhos e Camila agora conversava com Amanda mas ela, ainda assim, como quem percebe que está sendo observada, me olhou novamente. Um frio no estômago. “Douglas, oito vezes seis”, ouvi, mas mantive-me firme, olhando Amanda. Lembrei do dia anterior, quando ela sentou do meu lado na aula de ciências para fazer o trabalho sobre roedores. Ri ao lembrar dela pondo os dentinhos pra fora e fazendo orelhas com as mãos, imitando um ratinho. Ela sentiu alguma vergonha com meu sorriso e voltou-se para Camila novamente. “Marina, 3 vezes sete?”, “vinte e um professora”. Fiquei ali, sonhando com a menina, olhando seu rosto de lado, sua pele, seus cabelos. “Leonardo, quatro vezes seis”. O uniforme da escola ficava tão bem nela, e a mãe dela sempre colocava algum lanche gostoso pra ela trazer.

“Trinta e quatro, professora”. Um olhar em seco da professora, que repetiu a pergunta: “Camila, quatro vezes seis?”, e ela, parando de falar com a amiga, disse “vinte e quatro ‘fessora”. Foi o tempo que Amanda precisou para virar-se outra vez para mim, e colocar os dentes em forma de rato outra vez. Ri e ela correspondeu. Camila então olhou para mim e, mostrando ciúmes da amiga, a puxou pelo braço. A professora percebeu e disse “Amanda, oito vezes sete?” Era a pergunta mais temida da tabuada. Ninguém lembrava direito essa resposta. Claramente a professora estava se vingando pela desatenção das meninas. Eu fiquei pensando “cinquenta e seis, cinquenta e seis, cinquenta e seis” repetidamente, como se ela pudesse escutar meus pensamentos. Amanda, pensou um pouco e disse “cinquenta e quatro, prô Nanda!”. Vendo como fiquei preocupado, a professora deu seu golpe de misericórdia: “Felipe, oito vezes sete?” Ah… eu tinha que responder, não é mesmo? Ou deveria errar de propósito? Fiquei olhando para a professora e notei que ela sabia que eu sabia a resposta correta. Ela queria que eu respondesse.

Mas a Amanda ia me odiar depois, não ia? Ela ia se sentir humilhada por responder errado e ser eu a corrigi-la.  Mas valia nota! Não podia responder errado sabendo o certo. “Felipe?” perguntou novamente prô Nanda, olhando-me com aqueles olhos de ‘te peguei’. Tomei coragem, respirei fundo e respondi em tom de pergunta: “Cinquenta e…. cinco?” Eu sabia que essa era a resposta para qualquer pergunta, menos a que ela tinha feito… Me senti mal, estômago embrulhado… A professora ficou ali, olhando, marcou o “X” no caderno dela e virou. “Jaime, oito vezes sete?” e o Jaime respondeu sem titubear: “cinquenta e seis prô Nanda”. As perguntas continuaram, mas a ‘Mandinha não olhou mais pra mim. Fiquei chateado. 

“Fabiola, cinco vezes quatro?”, “Vinte prô”. Lembrei do aniversário de vinte anos do Gui. Gui é meu irmãozão! Foi bacana demais a festa, no último fim de semana. Ele estava com a namorada dele, a Bete, e um monte de amigos deles. Fizemos um churrasco lá em casa e eu brinquei pra caramba. Mas teve uma hora que o tio Alfredo me perguntou: “E aí, como vai sua namoradinha da escola? Como é mesmo o nome dela?” “Amanda”, respondi, “mas ela não é minha namorada!”. Ele riu e bagunçou meu cabelo, mas como explicar? Minha mãe e meu pai dizem que são namorados. Eles se beijam e se abraçam e a Amandinha e eu não fazemos isso. Já peguei na mão dela, e ela me deu um beijo na bochecha no meu aniversário, mas só isso. Meus pais também brigam e discutem, às vezes gritam e ficam sem se falar um com o outro, mas eu nunca gritei com a ‘Mandinha. Isso é feio. E se pra namorar tem que ser assim, prefiro não namorar. Não! Ela não pode ser minha namorada. Pra ser namorada tem que machucar, tem que fazer sofrer e eu não quero isso não. Eu me lembro de quando o Gui brigou com a Bete. Ele chegou chorando em casa. Eu não quero chorar.

“Felipe?” Disse a professora. Olhei para ela, que disse pausadamente, demonstrando que estava repetindo a pergunta que eu não tinha escutado: “Dezesseis dividido por quatro…” Refleti um pouco. ‘Quando é que tinham saído das contas de vezes para as de dividir?’ Respondo: “Quatro prô Nanda”. “Obrigada” responde ela. “Alessandra, quarenta e cinco por nove?” Essa era mais complicada… Tinha que lembrar da tabuada do nove… era… “cinco professora…”, respondeu Alessandra antes que eu lembrasse da resposta. A Alessandra tinha o mesmo nome da minha prima, filha da tia Carlinda. A um tempo atrás brincávamos muito juntos, antes da tia Carlinda se separar do tio João e ela ter que voltar pro interior. Minha mãe e a tia Carlinda diziam que éramos namoradinhos. Tiravam foto de nós dois com as mãos dadas e a Alessandra me abraçava e fazia um monte de poses. Era estranho, mas acho que estava perto de ser um namoro. Afinal, meus pais fazem um monte de coisas juntos e nós também. Ela vinha comigo jogar bola e eu brincava de boneca com ela. Às vezes brigávamos e nos chateávamos e minha mãe dizia “logo passa”, mas nem sempre passava logo. Tinha vez que tinha que esperar o outro dia pra brincar de novo. Mas ela não era tão engraçada como a ‘Mandinha. Aí eu percebi que a Amanda deveria ser a menina mais legal da escola. “Sérgio, sessenta e quatro dividido por oito?” O Sérgio sentava ao meu lado. Ele respondeu: “Quatro?” A professora marcou o X no caderno e disse: “Amanda?”, e ela respondeu “Oito prô Nanda” e se virou novamente para mim. Agora sem brincadeira. Era um olhar do tipo ‘viu como eu sei responder?’, e eu me envergonhei, mas, sem querer, pisquei um olho para ela e sorri. Ela ficou vermelha e virou para frente outra vez. 

Não sei o que deu em mim. A Amanda era a menina mais bonita da escola, com certeza. Podia desenhá-la de memória. Aí me dei em conta. Não éramos mesmo namorados. Meu pai nunca desenhou minha mãe, nem o Gui alguma vez desenhou a Bete. Abri o caderno e comecei. Cabelo, rosto, olhos, boca… Nariz! É… Eu não era bom desenhando… ficou horrível. Ai… Será que a gente está namorando então? Não pode ser… Namorar é ruim. Eu lembro de como a irmã mais velha da Amanda, a Vanda ficou mal quando o Miguel morreu no ano passado. Ela nem vinha pra escola, de tanto que ficou mal. Eu lembro da Amanda dizendo que ele tinha nome de anjo, mas não conseguiu voar (1). Já pensou se eu tento voar qualquer dia, como a ‘Mandinha ia sofrer? Melhor nem pensar nisso…

“Cinquenta e cinco por cinco Felipe”, “Onze prô”, respondi rapidamente. Na festa junina desse ano eu dancei com ela. A quadrilha foi bonita e o Douglas foi o noivo. A noiva foi a Camila. Como a Amanda e a Camila são muito amigas, ficamos logo atrás deles. Na hora de dançar juntinho, eu coloquei minha mão na cintura dela e viramos, voltamos e rodamos, parecia mágico. Me sentia flutuando no ar. Uma vez, escutei meu irmão dizer que a Bete fazia ele flutuar… E eles namoram… 

Fiquei pensando… Será que o Miguel e a Vanda dançavam? Será que ele pensou nela enquanto flutuava pelo ar sozinho naquele dia? Mas depois de voar, ele não voltou mais e a Vanda foi quem ficou triste… (1) a Vanda e a Amanda… Não… quase todo mundo que tinha alguma coisa a ver com ele ficou triste. Até eu fiquei meio triste… É, acho que namorar não é o melhor. A Amanda olhou para mim nesse momento em que meus pensamentos estavam longe. Olhou e pôs os dentinhos pra fora… ratinha… Eu sorri para ela e as pazes que nunca haviam sido desfeitas foram refeitas. Mas não estávamos namorando. É melhor assim. Melhor não namorar...


quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Natureza humana


A mesma mão que salva é a que apedreja,
o mesmo beijo que apaixona, trai.
O mesmo amigo que paga a cerveja,
é o que te abandona e se vai.

Assim como a mão que te recebe
é a mesma que esbofeteia,
e é no riso de alegria que também se percebe
o sarcasmo e a ironia.

É no sangue que doamos para a cura
que também notamos a doença
e é na mente que parece pura
em que percebemos a descrença.

É na boca que fala com sinceridade
que muitas vezes se decanta o veneno.
É mirada leve e sem vaidade
que notamos a dor e o sofrimento.

A "natureza humana" é assim, desse jeito: 
caótica, frágil, sem destino ou sentido.
Não existe algo bom que com efeito
não seja deturpado e convertido em desatino.


Crédito da ilustração: Vector Graphics

domingo, 1 de novembro de 2020

Um drink e uma memória




E mais uma vez a noite veio
ainda que serena e calma,
trouxe fome e dor em seu seio,
desalento e tristeza para a alma.

Não era uma noite comum, decerto.
Era aquela noite memorável
em que as memórias vinham ao deserto,
e ele somente se sentia mais deplorável.

De aspecto já sombrio ele se calou.
Reafirmou o mesmo que fazia todos os anos:
de que a culpa toda era sua, que faltou.
E que ali havia coberto seu pai em panos.

Delirante como sempre, bêbado como nunca,
atiçou mais uma vez sua dor em autoflagelo.
Buscou dormente mais uma bebida naquela espelunca
E se afundou em auto piedade e ao gelo.

Lembrou-se de sua mãe chorosa.
De seus irmãos e irmãs revoltosos
e da cidade que ele deixou em polvorosa
quando com seu crime satisfez aos invejosos.

Fitou seu copo mais uma vez, talvez a última
E tomou outro gole a terminar sua noite.
Correu ao parapeito, jogou-se à sua nova vítima,
saciando sua sede com ávido apetite.

Era trinta e um de outubro, data comum.
Mas não para ele que, com sua fúria,
bebia de sangue de inocente incomum
para esquecer de seu crime de luxúria.

Foi a setecentos e vinte e três anos já passados.
Se tornou um abjeto vampiro, de sangue bebedor.
Fez nessa data sua primeira vítima, o impensado,
seu próprio pai foi quem saciou seu torpor.

Crédito da foto: Engin Akyurt

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Trajetos incertos



 São tranquilos os trajetos que se passa
sem notar margens, lados ou calçadas.
Porém, basta olhar mais aguçado,
para calma tornar-se descompasso.

É tragédia de carne, fel e sangue
o que faz da estrada rua e asfalto.
E riqueza alguma faz-se falta
Onde pisa e transita essa gangue.

Mas esperto é quem tem paz no assalto,
quem de pé não se cansa, dissimula
e se sai sem um passo nem ressalto.

Pois o mundo só gira e não emula
e tranquilo só quem fica exausto,
para, queima e morre sobre a mula.


Crédito da foto: Kaique Rocha

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Corroído

 


Dói por dentro esse sentimento!
É prisão, falsidade, estremecimento,
é poético e sensível, é falso e nojento.

Queria fugir e errar, sair de mim.
Mas impossível é sair assim
dessa armadilha sem fim.

Dias passam em rotina e como destino
minha alma se desfaz e se corrói em desatino
recriando durante a noite meu vazio matutino

Fosse minha manhã mais bela,
minha tarde não seria cavalo sem sela
e não prenunciaria noite sem estrela.

Mas não há mudança nesse paradigma insólito,
não há cadência que pare esse som mórbido
e não existe meio para acabar com esse óbito.

Parece que não há saída dessa esguia trilha,
não há como fugir dessa matilha,
não há alternativa, túnel, ponte ou escotilha.

Há somente o vazio e a repetição
da incessante dor em ebulição
e da sensação de temor e aflição.