terça-feira, 20 de setembro de 2022

Um sonho


Noutro dia acordei assustado. Pensei ter sonhado que saia de meu corpo. Não da forma romantizada que sempre contam as pessoas em suas experiências espirituais, nem de forma alegórica como em uma aula de filosofia. Também não era nem a barata de Kafka ou a borboleta de Zhuang Zhou, tampouco vi unicórnios, anjos ou luzes no final de algum túnel metafórico. Tentarei descrever o que ocorreu.

Inicialmente me senti absorto com uma sufocante sensação de estar preso, atado por tiras invisíveis de cordões finos e resistentes que apertavam mais a cada tentativa, a cada esforço, a cada vez que eu tentava de alguma forma me mexer. Cada desespero me levava a mais dor. Minhas pernas, minha barriga, meus braços, pescoço, cabeça, todo meu corpo parecia débil e queimava de forma dilacerante. Porém eu não conseguia parar de tentar. Era como a dor viciante de coçar a cabeça com piolhos ou de mexer numa ferida em cicatrização. A dor consumia e agradava ao mesmo tempo, acompanhada de um medo absurdo de que seu parasse de tentar escapar, a própria dor que eu mesmo me provocava viria de forma derradeira e acabaria comigo de uma só vez. “Adiante!”, pensava com uma arrogância demente de quem não tem mais nada a perder nem a ganhar. Somente o sofrimento pelo sofrimento até que, em dado instante que poderia muito bem ser o último, me vi arrancado, puxado de dentro de mim, com a mais terrível sensação de escapar da minha carne. Atravessei as cordas como se eu fosse feito de manteiga, sentindo os cortes em cada músculo, nervo, tendão e ossos.

Fiquei dependurado no ar, de costas, braços e pernas soltas, cabeça pendendo para trás e barriga para cima. Senti então meu sangue, viscoso, fétido, escorrendo por todo meu corpo e me deixando. Não conseguia me mexer, mas aos poucos sentia a dor saindo de mim. Quando a última gota saiu do meu corpo me senti leve. Mexi meus dedos dos pés e depois os pés e imitei o movimento com as mãos. Ergui levemente a cabeça só para sentir agora, ao invés de dor, uma angústia, dentro de mim. Virei no ar de uma só vez somente para ver meu corpo abatido logo abaixo de mim. Ele não parecia vivo. Escorriam sangue dos olhos, nariz, boca e orelhas e o odor era insuportável. Mistura de suor, sangue, urina e fezes. Não havia nada de belo naquele reflexo logo abaixo de mim. Era uma mórbida carcaça sem vida que causava uma sensação forte de repulsa. 

Tentei me levantar e me colocar em posição de caminhar, sem sucesso. Depois, tentei me mover empurrando o  ar de alguma forma e percebi que nem me virar conseguia mais. Cansei de tanto tentar até que comecei a me sentir empurrado para baixo, de volta àquele corpo vazio. Não queria retornar. Não queria voltar para aquele mulambo, para aquele saco podre, para aquilo! Mas não tinha escolha. Voltei sentindo a mesma dor de quando fui arrancado. Só que agora era pior. Não havia esperança de algo novo por que eu já sabia o que me esperava: aquela prisão nefasta daquele corpo feito de morte, que consome a morte, que vive para aguardar e causar o próprio desfalecimento, o próprio apodrecimento.

Acordei de sobressalto e me sentei. Senti um alívio e depois uma tristeza profunda e me levantei. Outro dia se iniciava.

Créditos da imagem: History.uol





quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Loneliness


Sometimes I feel empty. 
I journey into dismay,
discontent and self-pity
entering a void no one may.

I grieve of losses I never had,
I lament for loves that never came
Torment my soul, sad,
With a struggling shame.

All this darkness, this pain,
this undying abyss,
this never ending rain
makes me want to stop all of this.

Sometimes the fight is so intense
that I decay, exhausted,
in darkness so dense
that no one should have followed.

And then I fall asleep
I enter the realm of nothingness
where reality is flipped
and there’s only vagueness

There aren’t whys or hows
in this profound emptiness,
in the void of dreamless drowse
only sweet dull loneliness.


Créditos da imagem: Deutche Welle

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Numa formatura...



“Numa cerimônia de graduação…”
Cerimonialista: “E agora, a paraninfa da turma, Deisiane Silva”
[Aplausos]

A maior emoção da minha vida foi quando eu olhei para aquele quadro gigante formado por um monte folhas de sulfite coladas lado a lado e lá, do lado do número doze eu li “Deisiane Maria Ferreira Silva”. Era eu! Aprovada para a Universidade de Medicina da USP. Tinha que avisar minha mãe urgentemente. Lembro que naquele dia eu tomei o ônibus e fui correndo. Me lembro que enquanto ia na condução sentido São Mateus, em meio à felicidade do momento, me vi lembrando-me do dia em que tudo isso começou.

Minha mãe trabalhava no centro de coleta seletiva na Avenida Sapopemba. Ela ajudava na coleta e seleção de lixo reciclável. Nesse dia, quando cheguei da escola, havia uma mochila novinha na minha cama. Cadernos, livros, etc. Eu nunca tinha tido isso. Tinha os da prefeitura que chegavam no meio do ano, quando chegavam. E nesse ano, já era agosto e nada. Seguia usando os cadernos do ano anterior para escrever. Eu tinha treze anos e estudar não era exatamente a minha prioridade nessa época. Mas a mochila era bonita! Abri e vi cadernos seminovos e livros em bom estado. Nem eram livros do que eu estava estudando, mas eram livros novos e pareciam ser para mim. Minha mãe então veio e me explicou que alguém havia jogado essa mochila no lixo e apareceu lá no centro de reciclagem. Ela falou com a supervisora dela que não viu problemas em trazer para casa. Agradeci minha mãe com um abraço e um beijo. A vida não foi fácil para ela. Sabe, sempre fomos gente honesta, trabalhadora, mas depois que meu pai morreu, minha mãe tinha ficado num estado de depressão profunda. Ela estava grávida, perdeu o filho e a capacidade de ter filhos também. Quando voltou ao trabalho, lhe deram férias e ao voltar das férias a demitiram. Tivemos que largar tudo que já havíamos conquistado e recomeçar a vida na favela… Mas isso eu só sabia pelas histórias. Quando meu pai morreu eu tinha menos de dois anos de vida. Quando minha mãe saiu, eu peguei o material e comecei a olhar, e folhear. De repente, um papel caiu do caderno. Estava dobrado, em três partes, como uma carta a ser colocada em um envelope. E ela me marcou profundamente. Essa carta eu gostaria de compartilhar com vocês hoje:


Mãe e Pai, me desculpem. Desculpem-me por haver nascido e por haver sido um problema para todos vocês por tanto tempo. Mãe, perdoe a insensatez de ter saído de seu útero vivo. Pai, perdoe a falta de senso de haver sido este espermatozoide a ter fecundado o óvulo da mamãe. Eu não queria destruir a vida ou os sonhos de vocês. Não tinha essa intenção. Eu só queria existir e nascer. Achei, por um tempo, que poderia sonhar grande. Ter uma profissão que ajudasse as pessoas. Olhei para meu mundo e um dia, quando você pai me levou ao hospital naquela vez em que eu estava gripado, vi aquele senhor de branco perguntando coisas, me analisando e, como que num passe de mágica, ele disse o que eu tinha e como eu melhoraria. Quis ser como ele. Depois, descobri que ele era médico. Médico! Palavra bonita. Doutor é como todos lhe chamam. Queria ser isso. Mas não poderei. Como foi que me permiti sonhar tanto? Como uma criatura como eu que não deveria nem ter nascido poderia pensar em ajudar outros a viver? Como alguém como eu, de existência questionável poderia ajudar outros a existir? Não! Isso não é nem nunca será para mim. Eu tenho destino certo e já está decidido. Quando vocês lerem essa carta, eu já estarei morto. Vou saltar e voar até morrer de encontro ao chão e voltarei a ser pó. O pó que nunca deveria ter deixado de ser. E vocês, então, voltarão a ser felizes. E poderão passear e viajar. E, assim, eu terei curado a vida de quem mais importa e de quem mais amo: a de vocês. Amo vocês dois!


Beijos,

Miguel.

(1)


Cresci e reli muitas vezes essa carta. Não sei nem procurei saber o que aconteceu com o Miguel. Realmente creio que ele se matou. Provavelmente alguma depressão por conta da briga constante dos pais, ou por qualquer outra razão relacionada a eles. Também não sei quantos anos tinha, mas a julgar pelo material na mochila, ele estava na oitava série do fundamental.

Quando era criança, Miguel passou a ser meu amigo imaginário. Conversava com ele, pedia conselhos, me revoltava, chorava e ria. Mas depois, quando cresci e analisei um pouco melhor as palavras dele, vi que, independente do que tenha acontecido, ele tinha uma vocação. Ele queria ser médico desde jovem e já entendia o que isso significava: curar pessoas. Parece óbvio, mas não é. Ele foi até às últimas consequências para tentar curar seus pais. Não sei se conseguiu. Creio que não. Mas por quem nos importamos, não medimos esforços, por mais idiotas que sejam nossas escolhas e opções, fazemos o que estiver ao nosso alcance para vê-los bem. E quando nos dizem que estudamos e nos formamos para aprender mais técnicas e nos capacitarmos para nosso futuro trabalho, eu concluo dizendo que não. Isso é só uma parte. Mas a parte mais importante, o real motivo pelo qual nos formamos médicos é para ampliarmos mais e mais a quantidade de pessoas por quem faríamos de tudo para vê-las melhor. É para entender essa empatia e passá-la adiante. 




Créditos da imagem: Alpha convites