Inicialmente me senti absorto com uma sufocante sensação de estar preso, atado por tiras invisíveis de cordões finos e resistentes que apertavam mais a cada tentativa, a cada esforço, a cada vez que eu tentava de alguma forma me mexer. Cada desespero me levava a mais dor. Minhas pernas, minha barriga, meus braços, pescoço, cabeça, todo meu corpo parecia débil e queimava de forma dilacerante. Porém eu não conseguia parar de tentar. Era como a dor viciante de coçar a cabeça com piolhos ou de mexer numa ferida em cicatrização. A dor consumia e agradava ao mesmo tempo, acompanhada de um medo absurdo de que seu parasse de tentar escapar, a própria dor que eu mesmo me provocava viria de forma derradeira e acabaria comigo de uma só vez. “Adiante!”, pensava com uma arrogância demente de quem não tem mais nada a perder nem a ganhar. Somente o sofrimento pelo sofrimento até que, em dado instante que poderia muito bem ser o último, me vi arrancado, puxado de dentro de mim, com a mais terrível sensação de escapar da minha carne. Atravessei as cordas como se eu fosse feito de manteiga, sentindo os cortes em cada músculo, nervo, tendão e ossos.
Fiquei dependurado no ar, de costas, braços e pernas soltas, cabeça pendendo para trás e barriga para cima. Senti então meu sangue, viscoso, fétido, escorrendo por todo meu corpo e me deixando. Não conseguia me mexer, mas aos poucos sentia a dor saindo de mim. Quando a última gota saiu do meu corpo me senti leve. Mexi meus dedos dos pés e depois os pés e imitei o movimento com as mãos. Ergui levemente a cabeça só para sentir agora, ao invés de dor, uma angústia, dentro de mim. Virei no ar de uma só vez somente para ver meu corpo abatido logo abaixo de mim. Ele não parecia vivo. Escorriam sangue dos olhos, nariz, boca e orelhas e o odor era insuportável. Mistura de suor, sangue, urina e fezes. Não havia nada de belo naquele reflexo logo abaixo de mim. Era uma mórbida carcaça sem vida que causava uma sensação forte de repulsa.
Tentei me levantar e me colocar em posição de caminhar, sem sucesso. Depois, tentei me mover empurrando o ar de alguma forma e percebi que nem me virar conseguia mais. Cansei de tanto tentar até que comecei a me sentir empurrado para baixo, de volta àquele corpo vazio. Não queria retornar. Não queria voltar para aquele mulambo, para aquele saco podre, para aquilo! Mas não tinha escolha. Voltei sentindo a mesma dor de quando fui arrancado. Só que agora era pior. Não havia esperança de algo novo por que eu já sabia o que me esperava: aquela prisão nefasta daquele corpo feito de morte, que consome a morte, que vive para aguardar e causar o próprio desfalecimento, o próprio apodrecimento.
Acordei de sobressalto e me sentei. Senti um alívio e depois uma tristeza profunda e me levantei. Outro dia se iniciava.