“Felipe, sete vezes cinco”, me perguntou a professora em sua chamada oral. Sempre fui bom em cálculos mentais e a tabuada se mostrava fácil demais para mim. “trinta e cinco professora”, respondi orgulhoso. A Amanda me olhou e me senti envergonhado. Olhei para baixo, tentando parecer invisível. Não funcionou. “Carlinhos, nove vezes quatro”, e ele respondeu “trinta e seis”. Levantei os olhos e Camila agora conversava com Amanda mas ela, ainda assim, como quem percebe que está sendo observada, me olhou novamente. Um frio no estômago. “Douglas, oito vezes seis”, ouvi, mas mantive-me firme, olhando Amanda. Lembrei do dia anterior, quando ela sentou do meu lado na aula de ciências para fazer o trabalho sobre roedores. Ri ao lembrar dela pondo os dentinhos pra fora e fazendo orelhas com as mãos, imitando um ratinho. Ela sentiu alguma vergonha com meu sorriso e voltou-se para Camila novamente. “Marina, 3 vezes sete?”, “vinte e um professora”. Fiquei ali, sonhando com a menina, olhando seu rosto de lado, sua pele, seus cabelos. “Leonardo, quatro vezes seis”. O uniforme da escola ficava tão bem nela, e a mãe dela sempre colocava algum lanche gostoso pra ela trazer.
“Trinta e quatro, professora”. Um olhar em seco da professora, que repetiu a pergunta: “Camila, quatro vezes seis?”, e ela, parando de falar com a amiga, disse “vinte e quatro ‘fessora”. Foi o tempo que Amanda precisou para virar-se outra vez para mim, e colocar os dentes em forma de rato outra vez. Ri e ela correspondeu. Camila então olhou para mim e, mostrando ciúmes da amiga, a puxou pelo braço. A professora percebeu e disse “Amanda, oito vezes sete?” Era a pergunta mais temida da tabuada. Ninguém lembrava direito essa resposta. Claramente a professora estava se vingando pela desatenção das meninas. Eu fiquei pensando “cinquenta e seis, cinquenta e seis, cinquenta e seis” repetidamente, como se ela pudesse escutar meus pensamentos. Amanda, pensou um pouco e disse “cinquenta e quatro, prô Nanda!”. Vendo como fiquei preocupado, a professora deu seu golpe de misericórdia: “Felipe, oito vezes sete?” Ah… eu tinha que responder, não é mesmo? Ou deveria errar de propósito? Fiquei olhando para a professora e notei que ela sabia que eu sabia a resposta correta. Ela queria que eu respondesse.
Mas a Amanda ia me odiar depois, não ia? Ela ia se sentir humilhada por responder errado e ser eu a corrigi-la. Mas valia nota! Não podia responder errado sabendo o certo. “Felipe?” perguntou novamente prô Nanda, olhando-me com aqueles olhos de ‘te peguei’. Tomei coragem, respirei fundo e respondi em tom de pergunta: “Cinquenta e…. cinco?” Eu sabia que essa era a resposta para qualquer pergunta, menos a que ela tinha feito… Me senti mal, estômago embrulhado… A professora ficou ali, olhando, marcou o “X” no caderno dela e virou. “Jaime, oito vezes sete?” e o Jaime respondeu sem titubear: “cinquenta e seis prô Nanda”. As perguntas continuaram, mas a ‘Mandinha não olhou mais pra mim. Fiquei chateado.
“Fabiola, cinco vezes quatro?”, “Vinte prô”. Lembrei do aniversário de vinte anos do Gui. Gui é meu irmãozão! Foi bacana demais a festa, no último fim de semana. Ele estava com a namorada dele, a Bete, e um monte de amigos deles. Fizemos um churrasco lá em casa e eu brinquei pra caramba. Mas teve uma hora que o tio Alfredo me perguntou: “E aí, como vai sua namoradinha da escola? Como é mesmo o nome dela?” “Amanda”, respondi, “mas ela não é minha namorada!”. Ele riu e bagunçou meu cabelo, mas como explicar? Minha mãe e meu pai dizem que são namorados. Eles se beijam e se abraçam e a Amandinha e eu não fazemos isso. Já peguei na mão dela, e ela me deu um beijo na bochecha no meu aniversário, mas só isso. Meus pais também brigam e discutem, às vezes gritam e ficam sem se falar um com o outro, mas eu nunca gritei com a ‘Mandinha. Isso é feio. E se pra namorar tem que ser assim, prefiro não namorar. Não! Ela não pode ser minha namorada. Pra ser namorada tem que machucar, tem que fazer sofrer e eu não quero isso não. Eu me lembro de quando o Gui brigou com a Bete. Ele chegou chorando em casa. Eu não quero chorar.
“Felipe?” Disse a professora. Olhei para ela, que disse pausadamente, demonstrando que estava repetindo a pergunta que eu não tinha escutado: “Dezesseis dividido por quatro…” Refleti um pouco. ‘Quando é que tinham saído das contas de vezes para as de dividir?’ Respondo: “Quatro prô Nanda”. “Obrigada” responde ela. “Alessandra, quarenta e cinco por nove?” Essa era mais complicada… Tinha que lembrar da tabuada do nove… era… “cinco professora…”, respondeu Alessandra antes que eu lembrasse da resposta. A Alessandra tinha o mesmo nome da minha prima, filha da tia Carlinda. A um tempo atrás brincávamos muito juntos, antes da tia Carlinda se separar do tio João e ela ter que voltar pro interior. Minha mãe e a tia Carlinda diziam que éramos namoradinhos. Tiravam foto de nós dois com as mãos dadas e a Alessandra me abraçava e fazia um monte de poses. Era estranho, mas acho que estava perto de ser um namoro. Afinal, meus pais fazem um monte de coisas juntos e nós também. Ela vinha comigo jogar bola e eu brincava de boneca com ela. Às vezes brigávamos e nos chateávamos e minha mãe dizia “logo passa”, mas nem sempre passava logo. Tinha vez que tinha que esperar o outro dia pra brincar de novo. Mas ela não era tão engraçada como a ‘Mandinha. Aí eu percebi que a Amanda deveria ser a menina mais legal da escola. “Sérgio, sessenta e quatro dividido por oito?” O Sérgio sentava ao meu lado. Ele respondeu: “Quatro?” A professora marcou o X no caderno e disse: “Amanda?”, e ela respondeu “Oito prô Nanda” e se virou novamente para mim. Agora sem brincadeira. Era um olhar do tipo ‘viu como eu sei responder?’, e eu me envergonhei, mas, sem querer, pisquei um olho para ela e sorri. Ela ficou vermelha e virou para frente outra vez.
Não sei o que deu em mim. A Amanda era a menina mais bonita da escola, com certeza. Podia desenhá-la de memória. Aí me dei em conta. Não éramos mesmo namorados. Meu pai nunca desenhou minha mãe, nem o Gui alguma vez desenhou a Bete. Abri o caderno e comecei. Cabelo, rosto, olhos, boca… Nariz! É… Eu não era bom desenhando… ficou horrível. Ai… Será que a gente está namorando então? Não pode ser… Namorar é ruim. Eu lembro de como a irmã mais velha da Amanda, a Vanda ficou mal quando o Miguel morreu no ano passado. Ela nem vinha pra escola, de tanto que ficou mal. Eu lembro da Amanda dizendo que ele tinha nome de anjo, mas não conseguiu voar (1). Já pensou se eu tento voar qualquer dia, como a ‘Mandinha ia sofrer? Melhor nem pensar nisso…
“Cinquenta e cinco por cinco Felipe”, “Onze prô”, respondi rapidamente. Na festa junina desse ano eu dancei com ela. A quadrilha foi bonita e o Douglas foi o noivo. A noiva foi a Camila. Como a Amanda e a Camila são muito amigas, ficamos logo atrás deles. Na hora de dançar juntinho, eu coloquei minha mão na cintura dela e viramos, voltamos e rodamos, parecia mágico. Me sentia flutuando no ar. Uma vez, escutei meu irmão dizer que a Bete fazia ele flutuar… E eles namoram…
Fiquei pensando… Será que o Miguel e a Vanda dançavam? Será que ele pensou nela enquanto flutuava pelo ar sozinho naquele dia? Mas depois de voar, ele não voltou mais e a Vanda foi quem ficou triste… (1) a Vanda e a Amanda… Não… quase todo mundo que tinha alguma coisa a ver com ele ficou triste. Até eu fiquei meio triste… É, acho que namorar não é o melhor. A Amanda olhou para mim nesse momento em que meus pensamentos estavam longe. Olhou e pôs os dentinhos pra fora… ratinha… Eu sorri para ela e as pazes que nunca haviam sido desfeitas foram refeitas. Mas não estávamos namorando. É melhor assim. Melhor não namorar...